04/10/2020 11:53
O que mais me impressionou no discurso do mito na ONU não foram os contornos retóricos, alvo de apupos estrepitosos por parte de comentaristas políticos e de grande parte da imprensa. A rigor, desde que me entendo por gente, discursos presidenciais na ONU tem importância… nenhuma.
São só um daqueles movimentos da coreografia diplomática. Já assisti presencialmente a dois deles –nada mais irrelevante, acompanhando outras presidências. Então, medir o mito pelo discurso ou seu impacto é implicância, assim como os aplausos do passado a um ou outro presidente eram apenas simpatia mesmo.
Mas o que mais impressionou no discurso, gravado e não do pulpito, por causa da pandemia, foi a magistral imagem que ilustra esta coluna. O mito, democraticamente eleito pelo voto direto, no gabinete presidencial, cercado de colaboradores. Generais?
A “troica”, como já existiu no passado? O “núcleo duro”? Nada disso. Para aqueles que reclamam da militarização do governo, do caráter autoritário da gestão, ali aparece um presidente civil cercado por líderes civis, representantes do Congresso Nacional: seu líder no Congresso, no Senado, na Câmara, outro líder de partido, um jovem ministro das Comunicações. Todos ao lado do presidente, para assistir ao pronunciamento.
E no meio de toda essa bílis política, fica a pergunta: o que é um democrata? O queridinho da imprensa? A foto acima não expõe uma memória de tempos e de um ambiente absolutamente democrático? Aqueles que pintavam o mito como o destruidor da democracia sobreviveram para assistir a essa cena, a de um presidente cercado por líderes parlamentares no núcleo do poder, compartilhando sua intimidade, em clima de total fidalguia e companheirismo? Se isso não é uma cena de tempos democráticos, o que será? Até mesmo as críticas e a impiedosa e inclemente liberdade de se proferir todos os impropérios contra o governo: é sinal de arbítrio?
O que está havendo com uma parte do país? Não gostar do mito é absolutamente legítimo. Detestá-lo, odiá-lo, trabalhar dia e noite para colocar outro em seu lugar, tudo certo.
Mas atacá-lo com todas as liberdades que somente a democracia oferece justamente pelo viés de que ele é um liberticida, isso é uma desonestidade intelectual inominável. Ainda mais vindo, muitas vezes, de bocas podres que ostentam passados idem. Isso é oportunismo de quinta categoria, quando não cinismo ou a pior desgraça: um arraigado sentimento elitista de que “os meus pecados” são virtuosos, o que me concede o direito de julgar qualquer um. Ah, vá!
O democrata presidente da República no exercício do cargo nos dias atuais (e sempre friso: só posso falar dele e de suas qualidades até o dia de hoje. Se ele piorar ou se contradisser, não posso fazer avaliações sobre o futuro. Sou colunista. Deuses ainda não vi na imprensa), repetindo, o mito está para decidir uma das medidas de mais alto impacto histórico de nossa trajetória como nação: a renda mínima para os brasileiros, o imposto de renda negativo.
Isso equivale dizer a erradicação da miséria. É um passo abissal. Vão dizer: quer fazer isso pra se reeleger! É… e Fernando Henrique Cardoso fez o plano Real por caridade né? Lula ampliou o Bolsa Família por benemerência, não foi? Que chatice! Pouco importa o que motiva o mito. O que importa é que se ele colocar de pé o alicerce de uma sociedade onde haverá um mínimo de justiça social, um ponto de partida para que o país possa pagar (e já estamos maduros econômica, histórica e socialmente para isso) para que não tenhamos miseráveis, que grande dia!
No mais, o enquadramento do discurso da ONU ficou muito bom!
Por Mario Rosa, 55 anos, é jornalista, escritor, autor de cinco livros e consultor de comunicação, especializado em gerenciamento de crises.