05/10/2020 15:25
Não existe reeleição grátis. A última 2ª feira (28.set.2020) deveria ter sido uma demonstração de força do governo Jair Bolsonaro e do ministro da Economia, Paulo Guedes. Os dois trouxeram ao seu lado, os líderes do governo no Congresso e dirigentes de partidos para anunciar, na hora do almoço, um novo programa social para substituir o Bolsa Família –em uma contraordem do que o presidente havia dito semanas atrás em um vídeo distribuído via twitter.
O novo programa poderá incluir os 35 milhões de beneficiários do Bolsa Família e mais 10 milhões de brasileiros que hoje recebem Auxílio Emergencial, um aumento de despesas de R$ 25 bilhões por ano. A intenção do presidente e de Guedes era mostrar que a ideia tinha apoio no Congresso e seria aprovada, junto com uma maldade: a recriação da CPMF sob novo nome.
A alternativa apresentada pela equipe de Guedes inclui retirar parte dos recursos do Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica), o fundo público que sustenta a educação nos municípios, e limitar os pagamentos dos precatórios, as dívidas federais que a última instância da Justiça mandou pagar. Numa alegoria exagerada, com uma mão Guedes ampliou o Bolsa Família para ajudar a reeleição de Bolsonaro, com a outra tirou dinheiro da merenda das crianças e deu um calote na dívida de milhares de credores. Tinha como dar certo? Não, e não deu.
Em poucas horas, o plano ruiu. “Limitar pagamento de precatórios é eufemismo para dizer que se empurrará com a barriga um pedaço relevante dessas despesas (obrigatórias). Não se cancelou um centavo de gasto. Quanto a usar 5% do Fundeb, é preocupante, pois pode representar by-pass no teto de gastos”, escreveu no twitter Felipe Salto, diretor do Instituto Fiscal Independente. Salto foi certeiro: o plano de Guedes era um versão 2.0 da pedalada sobre o Teto de Gastos.
Em três tuítes, o ministro do TCU (Tribunal de Contas da União) Bruno Dantas desmontou a engenharia da time de Guedes:
Parar de pagar os precatórios, que já estão suspensos neste ano em função da pandemia, seria apenas empurrar a dívida para frente. Uma solução meia-bomba para um problema real, a falta de alternativas da equipe em encontrar o que fazer com os beneficiários do Auxílio Emergencial a partir de janeiro, quando o programa acaba.
O mercado percebeu o sangue na água. O índice da bolsa de valores (Ibovespa) caiu 2,41%, em oposição ao dia de alta internacional. O Ibovespa Futuro caiu 2,62%, indicativo que o mau humor vai continuar. Em setembro, o Ibovespa acumula perdas de 4,73%. Nas horas subsequentes ao anúncio de Bolsonaro e seu ministro, o dólar subiu 1,42%, cotado a R$ 5,63.
No fabuloso livro “The Economists’ Hour: False Prophets, Free Markets, and the Fracture of Society” (A hora dos economistas: falsos profetas, livres mercados e a fratura da sociedade), Binyamin Appelbaum analisa as crises financeiras a partir da matizes dos mais influentes economistas do século 20, Milton Friedman e John Mainard Keynes. Quando descreve os mecanismos que levaram ao fim do padrão ouro e o início da flutuação cambial pelos Estados Unidos em 1972, Appelbaum conta como o responsável pela decisão, George Shultz, o primeiro economista a dirigir o departamento do Tesouro americano, dizia que seu segredo era “parar de falar sobre princípios e começar a falar sobre problemas”.
Vamos falar de problemas. Guedes tem três:
- A sua manutenção no cargo está vinculada à criação de um Bolsa Família repaginado que ajude na reeleição do presidente;
- O novo programa precisa caber dentro do orçamento, respeitando a Lei do Teto de Gastos;
- Ele precisa manter sua credibilidade no mercado. Nesta segunda, o mercado percebeu que o plano era uma empulhação que pretendia, ao mesmo tempo, enganar os congressistas, os credores do governo e os prefeitos que dependem do Fundeb.
Não há solução simples. A desconfiança sobre o poder de Guedes está medida na taxa dos juros futuros. Depois da entrevista do almoço, o contrato de Depósito Interfinanceiro (DI) para janeiro de 2022 passou de 2,85% para 3,01% e a do DI para janeiro de 2023 subiu de 4,23% para 4,51%. Cada ponto a mais mostra um mercado precificando ou a permanência de Guedes sem voz ativa e submisso aos caprichos eleitorais de Bolsonaro ou a sua substituição por um ministro ainda mais subserviente do presidente.
Guedes tem até dezembro para solucionar o quebra-cabeça. Se não conseguir, pode ser vítima de uma das leis de Kafka, uma anedota do ex-negociador da dívida externa brasileira Alexandre Kafka sobre as dinâmicas do poder. Diz a lei: “É menos importante encontrar soluções do que ter bodes expiatórios”. Guedes pode ser este bode.
Por Thomas Traumann, 53 anos, é jornalista, consultor de comunicação e autor do livro “O Pior Emprego do Mundo”, sobre ministros da Fazenda e crises econômicas. Trabalhou nas redações da Folha de S. Paulo, Veja e Época, foi diretor das empresas de comunicação corporativa Llorente&Cuenca e FSB, porta-voz e ministro de Comunicação Social do governo Dilma Rousseff e pesquisador de políticas públicas da Fundação Getúlio Vargas (FGV-Dapp).