Opinião – Um apadrinhado para fiscalizar o padrinho no TCU

09/10/2020 14:28

O ministro-chefe da Secretaria Geral, Jorge Oliveira, deve ser indicado pelo presidente Jair Bolsonaro para a vaga do ministro José Múcio Monteiro no TCU

Ontem, a Constituição Federal completou 32 anos. Nossa Carta, garantidora de direitos civis, sociais e políticos estabelece, ao regular a Administração Pública do Estado brasileiro, seus princípios fundamentais: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, exatamente nesta ordem.

Para os estudiosos do Direito Constitucional, o princípio dos princípios é o da supremacia do interesse público, que existe para nos vacinar do patrimonialismo clientelista, do compadrio, da prática desviante na gestão pública em que o administrador se comporta como se a coisa pública lhe pertencesse, tornando invisível a linha divisória entre o público e o privado.

O patrimonialismo muitas vezes se manifesta por atos concretos de utilização ou apoderamento indevido de bens públicos, como o uso pelo presidente do Senado de uma aeronave oficial para deslocamento com fins particulares –implante capilar, por exemplo. Ou para passeio pela orla de cidade litorânea do Maranhão.

Mas, outra grave forma de concretização do patrimonialismo acontece pelo uso abusivo do poder de nomeação de apadrinhado para ocupar determinado cargo público, em virtude da unicamente rala e não republicana relação de compadrio, que despreza o interesse da coletividade, desconsiderando e ignorando o conceito da meritocracia, milenar na China.

Como classificar então o uso do poder para a nomeação abusiva de apadrinhado para ocupar cargo público de natureza vitalícia? Como lidar com o fato que o apadrinhado não possui qualquer familiaridade com as atribuições da função que exercerá? Função que é exatamente de fiscalizar atos do padrinho nomeante? Para ser exercido como trampolim, visando outra futura nomeação para outro cargo ainda mais poderoso?

Refiro-me à anunciada indicação de Jorge Oliveira, secretário-Geral da Presidência, cujo nome foi apontado pelo presidente da República para ocupar o cargo de Ministro do Tribunal de Contas da União, mais importante organismo nacional de controle no universo anticorrupção.

A meu ver, a indicação evidencia desvio de finalidade que nulifica o ato de nomeação, além de desvirtuar e comprometer a essência de independência, âmago do TCU. O nome escolhido de um afilhado, oriundo do núcleo duro do Palácio do Planalto, que o protege com a lealdade daqueles que dão a própria vida pelo protegido até pode exercer função de confiança transitória no Executivo, mas é obviamente inconcebível, à luz dos cânones republicanos, ser guindado a função que exige controle corajoso das contas do próprio presidente.

A gratidão pela escolha impede o exercício da função, que o próprio escolhido já anuncia publicamente que seria “estágio” antes de chegar ao Supremo Tribunal Federal, como se Administração Pública fosse um balcão de negócios privados.

A discricionariedade administrativa que reveste o poder de escolha do homem público não é, sabidamente, infinita nem ilimitada. Há limites na esfera pública, que obrigatoriamente precisam ser observados e respeitados, sob pena de anulação do ato sem prejuízo da responsabilização com base na Lei de Improbidade Administrativa e até por crime de responsabilidade.

Foi exatamente neste mesmo contexto que o Supremo Tribunal Federal barrou a nomeação de Alexandre Ramagem para exercer a função de Diretor-Geral da Polícia Federal – pela violação ao princípio da supremacia do interesse público. E não foi diferente o desfecho do caso Cristiane Brasil, nomeada por Temer ao arrepio da moralidade para ser Ministra do Trabalho, tendo já sido condenada por violar as leis do trabalho.

Observo nesta nova escolha, assim como na edição da MP 966 que blinda corruptos e em outros atos, o total descompromisso presidencial com a agenda anticorrupção. Além de enxergar na atitude contribuição concreta para o avanço ainda maior da desmoralização dos Tribunais de Contas no Brasil, cujo redesenho é pugnado pela PEC 329, que não evolui.

Vejo na indicação divulgada de Jorge Oliveira, que nunca foi especialista em contabilidade pública, afronta grave à supremacia do interesse público. E violação à moralidade, bem como à impessoalidade e eficiência. Afrontas constitucionais são afrontas a todo o povo. Cabe à Procuradoria-Geral da República agir, na defesa intransigente do patrimônio público e da sofrida sociedade. É o que se espera.

 

 

 

 

Por Roberto Livianu, 52, é procurador de Justiça, atuando na área criminal, e doutor em direito pela USP. Idealizou e preside o Instituto Não Aceito Corrupção. Integra a bancada do Linha Direta com a Justiça, da Rádio Bandeirantes, é articulista da Folha de S. Paulo e do Estado de S.Paulo e é colunista da Rádio Justiça, do STF.

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