13/10/2020 08:20
”Câncer de mama: campanha começa”
Chegou o mês em que o Palácio do Planalto, o Cristo Redentor, o Congresso e outras sedes do poder são banhadas de rosa, como parte da campanha de conscientização do câncer de mama. Um festival de hipocrisia.
Um aviso de cara: a crítica que será feita a seguir poupa, evidentemente, quem se dedica a combater a doença ou a chamar a atenção para ela. Como em praticamente todo câncer, há muito sofrimento envolvido e tudo o que puder ser feito para minimizar dores e aumentar chances de cura deve ser celebrado. Reconheço, desde já, que uma enorme contribuição dessas campanhas foi a de diminuir o estigma associado com a enfermidade.
A crítica, por outro lado, é muito mais ao pacote de conscientização made in USA que nós, como sempre, macaqueamos de forma acrítica. Esse pacote tem alguns problemas, como veremos, e que têm sido apontados já há vários anos.
Por exemplo, a pesquisadora de políticas públicas Patricia Strach disseca, em um bom livro, o domínio que a fundação americana Komen construiu sobre a forma como o câncer de mama é discutido e enquadrado nos EUA.
É uma abordagem que dá lucro para uma infinidade de indústrias, que vendem toda sorte de quinquilharias com o laço rosa, de carro a frango frito, de refrigerante a produtos que podem contribuir, ironicamente, para o surgimento da doença. Bilhões de dólares todo ano giram em torno de uma causa que, naquele país, virou um fim em si mesmo.
No último demonstrativo financeiro da Komen, a propósito, vê-se que a maior parte dos recursos arrecadados vai para manter a própria campanha e o funcionamento da organização.
A crítica não é só dessa autora; há várias vozes naquele país que questionam por que o dinheiro levantado está indo para conscientização e não para a pesquisa científica sobre a doença.
Há questionamentos também sobre as recomendações básicas. As evidências científicas sobre o autoexame, por exemplo, não são favoráveis. Mesmo a mamografia, que hoje é indicada apenas para mulheres acima de 50 anos e a cada dois anos, tem evidências positivas, mas controversas. Porque, para cada vida efetivamente salva, o exame tipicamente identifica três mulheres com um tumor que não seria letal. Falsos positivos também são frequentemente encontrados. Espera-se, por outro lado, que sua eficácia melhore nos próximos anos com o uso da inteligência artificial.
Outra crítica que se faz é à sobreposição da campanha do laço rosa sobre outros cânceres, alimentando uma febre de conscientização (dia disso, mês daquilo, laço disso, cor daquilo) que, via de regra, não tem evidências de que funcione.
O câncer de pulmão, o mais letal no mundo, com muito mais mortes do que o de mama, é um que fica escondido no meio dessa epidemia de apelos. Nos EUA, como mostra Strach, os recursos públicos para pesquisa dos tumores de mama são bem maiores do que os de pulmão.
ENQUADRAMENTO É TUDO
As campanhas importadas da América do Norte têm um inegável sabor individualista. É como se a culpa fosse da pessoa, que não se cuida. Disso decorre a maior hipocrisia no contexto de políticas públicas dessa área: focar em comportamentos e não no problema em si.
O problema, lembremos, é o câncer de mama e não a falta de autoexame. O problema é o câncer de pulmão e não o apelo para o viciado largar, depois de décadas, um vício estimulado pela própria sociedade. É um erro que nos impede de entender que enfrentar esses desafios requer cruzar a fronteira artificial da saúde. Vou ilustrar.
Há poucos fatores controláveis associados com os tumores de mama, mas entre eles está, por exemplo, o consumo de junk food, que ainda é largamente estimulado pelo poder público no Brasil. São produtos que são pouco tributados considerando o dano que causam.
Mas a coisa é ainda pior. Basta lembrar que nós damos bilhões de reais em subsídios, todos os anos, para a produção de xarope de refrigerantes na Zona Franca de Manaus. Adianta pintar o Congresso Nacional de rosa? Percebem a hipocrisia-mor?
Da mesma forma, nós temos sido lenientes com a indústria do cigarro, que espeta uma conta muito maior nos brasileiros do que os impostos que arrecada –e o fumo também é apontado como fator causal no câncer de mama. Deixamos há muito tempo de fazer campanhas de marketing social para evitar que as pessoas comecem a fumar. E agora tem outra porcaria no mercado, o vaping.
Em resumo, é preciso empregar os recursos para oferecer tratamento digno, acessível e em tempo para os doentes, com base nas melhores evidências científicas e em abordagens racionais. É preciso, acima de tudo, desmascarar a hipocrisia que veste rosa enquanto estimula a doença que finge combater.
Por Hamilton Carvalho, 48 anos, estuda problemas sociais complexos. É auditor tributário no estado de São Paulo, doutor e mestre em Administração pela FEA-USP, ex-diretor da Associação Internacional de Marketing Social, membro da System Dynamics Society e da Behavioral Science & Policy Association. É filiado à Rede Sustentabilidade.