16/10/2020 10:50
A economia da China continuou se recuperando da crise da pandemia de coronavírus durante o terceiro trimestre de 2020. Depois da queda de aproximadamente 36% do PIB (Produto Interno Bruto) no primeiro trimestre, em relação ao anterior, em termos anualizados e dessazonalizados, cresceu 56,5% no segundo e se estima ter se elevado acima de 19% no terceiro.
Tudo indica que será a única economia grande a mostrar números positivos de crescimento este ano –algo em torno de 2,3%, com projeções apontando para acima de 8% em 2021. Ao final de 2021, ainda permanecerá abaixo de onde estaria conforme as projeções de antes da pandemia, mas o fato é que a contenção bem sucedida do vírus permitiu ser a primeira a entrar e a sair em relação aos outros países.
Uma característica em comum com o que está ocorrendo em outros países é a forma desequilibrada da recuperação econômica, com o lado da oferta saindo à frente da demanda. A reabertura das fábricas a partir de fevereiro possibilitou a retomada estável da produção industrial, enquanto o consumo doméstico geral ficou aquém no primeiro semestre de 2020.
A recuperação tem sido liderada por investimentos fixos e, do lado externo, exportações acompanhando a elevação gradual da atividade comercial global. Por outro lado, a recuperação vem mostrando sinais de alargamento, com vendas no varejo voltando ao nível pré pandemia em agosto e alguns dos setores de serviços mais impactados exibindo expansão em setembro. Exceto no caso de serviços que exigem proximidade física das pessoas, que ainda enfrentam restrições na oferta e desaceleração da demanda, apesar da contenção do vírus.
À medida em que a economia da China caminha em direção à normalização, pode-se perguntar se ela deve mudar de trajetória em relação à anterior, particularmente porque a economia global pós crise deverá passar a um “novo normal”. Até que ponto as pressões em direção a uma “desglobalização relativa” podem trazer a necessidade de a China rever seu caminho de desenvolvimento? Na verdade, acreditamos que a economia global pós covid-19 reforçará a necessidade da China de acelerar o que ela própria chamou de “reequilíbrio” e, com a recuperação depois do mergulho profundo durante a pandemia, o foco se voltará para um retorno mais acelerado ao que estava ocorrendo anteriormente.
A trajetória de crescimento da China na segunda década do século foi a de um gradual redirecionamento para um novo padrão de crescimento, no qual o consumo doméstico deveria aumentar em relação aos investimentos e exportações, enquanto também ocorresse um esforço para consolidar a inserção local acima na escada do valor adicionado em cadeias de valor globais. Os serviços também deveriam aumentar seu peso no PIB em relação à manufatura.
Ondas de super investimentos impulsionados pelo crédito em infraestrutura e habitação, após a crise financeira global, afastaram os receios de desaceleração abrupta no crescimento, mas há claramente uma percepção de esgotamento dessa alavanca, dados os patamares de endividamento que acompanharam seu uso extensivo. A queda nas taxas de crescimento do PIB de 2 dígitos nas décadas anteriores para 6% no ano passado – e provavelmente 4% à frente, depois de 2021 – seria a contrapartida do aumento dos salários e do consumo doméstico de massa e da transição para maiores pesos de serviços e alta tecnologia.
Dois foram –e continuam sendo– os grandes desafios. Por um lado, a transição para um modelo de crescimento menos dependente do investimento e das exportações vem ocorrendo a partir de um ponto de partida de participação do consumo no PIB excepcionalmente baixa. Além de elevada proporção de lucros em relação aos salários, os baixos níveis de gastos sociais públicos levam a uma elevada poupança das famílias. Em 2017, o consumo privado e o investimento foram, respetivamente, 39% e 44% do PIB, enquanto 60% era a média do consumo em relação ao PIB no resto do mundo. “Cicatrizes” deixadas pela Covid-19 no consumo doméstico e em termos de maior poupança familiar tornarão tal transição mais longa.
O “novo normal” da economia global tende a exibir um ambiente ainda menos favorável ao comércio exterior do que nos últimos anos. A conveniência da mudança de uma dependência do crescimento das exportações para o consumo doméstico será maior e, não por acaso, em maio o governo chinês começou a falar de “duplas circulações doméstica e internacional que complementam uma à outra”.
Nos últimos 2 anos, com a guerra comercial iniciada pelos EUA, os investidores do Japão e dos EUA já aceleraram a transferência de linhas de montagem e contratos de fornecimento em suas cadeias de valor de tecnologias de informação e comunicação da China para o Vietnã, Tailândia, Indonésia e, em menor grau, México, como aqui abordamos. Isso pode ser considerado como forte sinalização, independentemente das tensões comerciais diminuírem ou retornarem com força.
O segundo desafio está, é claro, na subida na escada tecnológica e de valor agregado. Anteriormente, em certa medida, a China recorreu a políticas de transferências forçadas por aqueles que queriam investir lá ou ao uso de tecnologias sem reconhecimento de propriedade intelectual. Ao mesmo tempo, também fez sua lição de casa em termos de investimentos em educação, infraestrutura etc. para absorver essa tecnologia de forma criativa.
Agora, atingiu o topo da escada, onde um conteúdo de tecnologia tácita e idiossincrática deve ser desenvolvido localmente, uma vez que não está disponível simplesmente pelo uso ou adaptação de tecnologias existentes. A Huawei vai ter que se virar sem Google. De qualquer modo, independentemente dos resultados das eleições nos EUA, o prêmio para a China acelerar esse processo aumentará no “novo normal” da economia global.
É claro que a China buscará compensar parcialmente o “descolamento” com os Estados Unidos mediante aprofundamento de outras frentes de integração externa. No caso da América Latina, o padrão recente de fluxos de capital –aqui abordado– tende a se reforçar, com investimentos diretos e aquisições substituindo empréstimos oficiais. Por outro lado, cumpre observar a forte correlação entre as taxas de crescimento de China e América do Sul significativamente aumentada desde a crise financeira global, por conta das importações de commodities pela primeira, e que acabará também sofrendo consequências do “reequilíbrio” chinês.
Por Otaviano Canuto, 64 anos, é membro sênior do Policy Center for the New South, membro sênior não-residente do Brookings Institute e diretor do Center for Macroeconomics and Development em Washington. Foi vice-presidente e diretor-executivo no Banco Mundial, diretor-executivo no FMI e vice-presidente no BID. Também foi secretário de assuntos internacionais no ministério da fazenda e professor da USP e da Unicamp.