26/10/2020 16:30
Ministério da Economia informou que a proposta de reforma administrativa manterá a estabilidade, o emprego e os salários dos servidores públicos atuais
Noticia-se que o governo está fazendo uma reforma administrativa silenciosa, que conseguiu reduzir a taxa de reposição do serviço público para 26%. Ou seja, de cada 100 vagas abertas por servidores que se aposentam, só 26 estão sendo preenchidas. A pergunta é: isso é bom ou mau?
Muita gente dirá de pronto que é bom. Mas a resposta realmente correta depende. Depende de que lugar do funcionalismo está sendo obtida a economia. Se for nos altos escalões do Judiciário e do Legislativo, possivelmente será bom. Idem nas assessorias especiais do Executivo.
Mas se for no quadro de enfermeiros dos hospitais? E no caso de professores nas escolas? Ou ainda no atendimento à população nos postos do INSS? Aí pode ser que a economia seja prejudicial à população –e, principalmente, à imensa massa de população carente.
Esse exercício ajuda a mostrar como a discussão de uma reforma administrativa pode ser distorcida. Embora forme um conjunto com inúmeras especificidades e gritantes desigualdades, o serviço público e, mais diretamente, os servidores públicos, costumam ser avaliados, e quase sempre mal avaliados, como se fossem uma coisa só e dispensável.
Se há privilegiados, ineficientes e preguiçosos entre os servidores, e é claro que eles existem, todos os servidores costumam ser jogados no mesmo balaio. Mas é evidente que nem todos merecem esse julgamento. A maioria, aliás, não merece.
O diabo, todos parecem concordar, mora nos detalhes. Mas há muitos casos em que, se mora onde mora, o diabo também passa temporadas nos agregados. Quando se trata do serviço público, é lá, nos dados agregados, que o diabo pode ser encontrado, na maior parte do tempo e dos casos.
São distorções de avaliação cristalizadas em preconceitos formados ao longo de gerações. Com base nisso, muitos reclamam tanto da quantidade quanto da qualidade do atendimento, ao mesmo tempo em que vociferam contra o inchaço da máquina pública. Querem mais escolas e hospitais, mas sem funcionários para operá-los. Deveriam ser estudados pelos cientistas da Nasa.
A reforma administrativa desenhada pela equipe do ministro Paulo Guedes e enviada pelo governo Bolsonaro ao Congresso, assim como sua “reforma silenciosa”, peca pela agregação e erra nos detalhes. No agregado, seu objetivo principal é meramente fiscalista, e ela se encaixa na ideologia geral de tirar o Estado de cena para abrir espaços ao setor privado, extinguindo ou terceirizando serviços. É, portanto, vesga.
Nos detalhes, pretende uma excessiva concentração de poder no Executivo, conferindo ao presidente atribuições inaceitáveis, como, por exemplo, a de acabar, numa canetada, com órgãos e entidades da administração pública. Além disso, poupa, deploravelmente, a alta administração pública, assim como as Forças Armadas, dos seus rigores para o andar de baixo do funcionalismo. É, portanto, iníqua.
Nessa reforma, segundo cálculos do consultor legislativo do Senado Vinicius Amaral e da procuradora do Ministério Público Contas de São Paulo e professora da FGV-SP, Elida Graziane, em recente artigo no jornal Valor Econômico, a possibilidade de indicação de cargos de confiança passaria dos atuais e já muitos 6,5 mil para absurdos 93 mil. Eis aí uma “reforma” que merece vir entre aspas.
O roteiro da “reforma” do governo Bolsonaro é o mesmo dos enredos que constituíram uma sociedade campeã de pobreza e desigualdades. Encolher os serviços públicos ou transferi-los para o setor privado prejudica a população que não tem acesso a serviços particulares, sobretudo nas áreas da saúde e da educação. A reforma, portanto, reforça as escandalosas desigualdades brasileiras.
No entanto, a “reforma”, que chegou não faz muito tempo, mas já dormita no Congresso, parece ter se transformado em panaceia dos desequilíbrios fiscais. Parece que com ela seria possível equilibrar as contas públicas e até financiar uma renda básica permanente, como acaba de sugerir um grupo de empresários.
É urgente, sem dúvida, uma reforma administrativa, que busque assegurar mais eficiência ao serviço público, com ênfase em mais eficiência no atendimento da população necessitada. Não uma “reforma” fiscalista, que aumente o poder discricionário do presidente, nem preserve privilégios dos altos escalões.
Do ponto de vista fiscal, é ilusão achar ser possível instituir um inevitável programa permanente de renda básica, capaz de evitar uma explosão dos níveis de pobreza, apenas com cortes de gastos. Mesmo cortes drásticos em despesas obrigatórias, em conjunto com congelamento de salários no serviço público, seriam insuficientes. Sem uma combinação de cortes de gastos, aumento de tributação e flexibilização da regra do teto, o dilema existente, que opõe pressão fiscal a pressão social, não se resolve.
Por José Paulo Kupfer, 70 anos, é jornalista profissional há 51 anos. Escreve colunas de análise da economia desde 1999 e já foi colunista da Gazeta Mercantil, Estado de S. Paulo e O Globo. Idealizador do Caderno de Economia do Estadão, lançado em 1989, foi eleito em 2015 “Jornalista Econômico do Ano”, em premiação do Conselho Regional de Economia/SP e Ordem dos Economistas do Brasil. Também é um dos dez “Mais Admirados Jornalistas de Economia”, nas votações promovidas pelo site J&Cia. É graduado em Economia pela Faculdade de Economia da USP.