Opinião – A pandemia e os homens de visão

13/01/2021 15:31

Agências protegem laboratórios
Pulverizam riscos entre cidadãos

No dia 18 de outubro de 2019 –um mês antes do que é hoje reconhecido como o 1º caso de covid-19 no mundo– uma conferência organizada pela universidade Johns Hopkins, em parceria com o Fórum Econômico Mundial e a Bill e Melinda Gates Foundation, fez um exercício para preparar uma resposta organizada a uma hipotética pandemia mundial de coronavírus. O Evento 201 simulou decisões que deveriam ser tomadas em conjunto com entidades e governos mundiais. Os 15 participantes –ou players, como a organização do evento preferiu descrevê-los– eram “líderes mundiais” verdadeiros, membros genuínos da ONU, empresas farmacêuticas, universidades, mercado financeiro, empresas de relações públicas, linhas aéreas, empresas de logística e transporte (UPS), o chefe da Autoridade Monetária de Singapura, e o diretor-geral do Centro Para o Controle de Doenças da China e presidente da Sociedade Chinesa de Biotecnologia, assim como um diretor do CDC (Centro para o Controle de Doenças dos EUA).

Clarividente, o representante da Johnson & Johnson diz neste vídeo da simulação que é possível fazer uma vacina para um novo coronavírus em 1 an , mas isso “requer flexibilidade regulatória”. Para financiar essa empreitada bilionária, ele sugere a criação de um fundo global que adiante o dinheiro necessário para a produção de vacinas e crie uma linha de empréstimo para países pobres. O evento defendeu a centralização do controle da pandemia, e contou com simulações bastante realistas, incluindo uma discussão entre 2 profissionais de saúde: um imunologista e uma epidemiologista.

O imunologista é claramente o perdedor da discussão simulada. Ele diz que cientistas não tiveram sucesso em desenvolver uma “vacina licenciada” e que, apesar das novas tecnologias, vai ser muito difícil produzir uma vacina que possa garantir “eficácia e segurança”.

A epidemiologista discorda radicalmente: “Nós simplesmente não podemos contar com prazos e processos antigos. Estamos numa crise. Temos que ir além dessas questões. Vai ser complicado, vai ser difícil, mas temos que dedicar todos os recursos disponíveis para que isso [a vacina] aconteça”.

O imunologista fala de outros problemas previsíveis, sempre com uma certa cara de trouxa, mas a epidemiologista destrói aquele pessimismo com impaciência: “Doutor, na minha opinião você está perdido nos detalhes. Com dinheiro suficiente –e vontade política– tudo é possível”. Pra não deixar dúvida sobre quem ganhou o debate –e que tipo de atitude era esperada dos participantes do evento no caso de a fantasia se materializar– a apresentadora do falso programa de TV fecha o segmento mostrando que o povo apoia o ponto de vista da epidemiologista: “Nossa emissora afiliada acaba de publicar uma pesquisa de opinião sobre a expectativa das pessoas por uma vacina. A maioria dos norte-americanos espera que haja uma vacina disponível em 2 meses, e 65% dos entrevistados estão ansiosos para tomar a vacina, mesmo que seja experimental”. Nada como o medo, senhores, para destruir a capacidade crítica e facilitar o controle dos ameaçados.

Apesar de ser apenas um exercício, o Evento 201 pode ser considerado a Mãe Dinah de todas as simulações, porque já a partir do dia 4 de fevereiro a tal “flexibilidade regulatória” começou a agir. Ao contrário da imunização da vacina –que ainda não foi garantida pelos fabricantes– o governo norte-americano garantiu imunidade aos fabricantes de vacinas até o ano de 2024 por quaisquer erros advindos de ações e produtos para o combate à pandemia. Se você sofrer efeitos adversos severos depois de tomar uma vacina para a covid-19, advogados informam à CNBC que basicamente não existe ninguém para ser processado na justiça norte-americana.

Para o advogado entrevistado pela CNBC, esse tipo de imunidade generalizada concedida pelo governo “é algo muito raro”. Segundo o artigo, “você também não pode processar a FDA por autorizar a vacina para uso emergencial, nem pode responsabilizar seu patrão se ele lhe obrigar a tomar a vacina como condição para continuar no emprego“. A FDA é a agência reguladora de medicamentos e alimentos dos EUA, Food and Drug Administration, e já deu provas suficientes de corrupção endêmica. Eu fui ver o documento original do governo, que curiosamente foi publicado em 17 de março, mas se declara efetivo a partir de 4 de fevereiro. Fiquei curiosa sobre a razão da aparente retroatividade, mas não encontrei nada esclarecedor. Não tentei entrevistar nenhum dos envolvidos, mas a CNBC tentou e não conseguiu.

Os EUA criaram uma aberração judicial conhecida como Corte (Tribunal) das Vacinas. Essa corte tem juízes separados do resto do sistema judicial norte-americano, e ela serve para pagar indenizações e deixar o assunto morrer em silêncio, sem júri popular por exemplo. Mas quem paga as eventuais indenizações determinadas pela corte, veja só, é o próprio contribuinte norte-americano, que tem uma cobrança extra no preço da vacina para cobrir o curso desses percalços jurídicos. (Eu falei um pouco disso aqui). Que belo e perfeito exemplo do “capitalista nos lucros, socialista nos custos”.

É compreensível o argumento de que empresas precisam ter alguma garantia de imunidade para que se atrevam a tomar a iniciativa de inventar produtos e remédios. Isso é ainda mais verdade durante uma pandemia, onde a necessidade de urgência pode se sobrepor à necessidade de segurança. Mas o caso da produção de vacinas da covid vai entrar para os anais da história do falso capitalismo norte-americano, e vai fazer você ponderar sobre o singular da palavra “anais”. Para quem não sabe, grande parte do desenvolvimento das vacinas nos EUA foi financiada com dinheiro público –elo menos US$ 3 bilhões, segundo a CNN. “Contribuinte norte-americano está financiando 6 vacinas”, diz a manchete. Segundo o USA Today, contudo, o valor é ainda mais alto: US$ 9 bilhões. E quanto vai ser o lucro dessa empreitada financiada com dinheiro público? Vou usar a CNN de novo, que não é nenhuma FOX nem Jacobin: Segundo analistas de mercado, a venda de vacinas da Pfizer e da Moderna vai gerar apenas em 2021 nada menos que US$ 32 bilhões.

Na semana que vem (acho), vou falar de teorias sobre o surgimento do coronavírus, assunto que já venho discutindo há um tempo e que agora ficou mais prominente com uma reportagem enorme da New York Magazine. Deixo aqui, seguindo a regra imperativa do “rir pra não chorar”, a versão do South Park sobre a origem da doença.

 

 

 

 

Por Paula Schmitt é jornalista, escritora e tem mestrado em ciências políticas e estudos do Oriente Médio pela Universidade Americana de Beirute. É autora do livro de ficção “Eudemonia” e do de não-ficção “Spies”. Venceu o Prêmio Bandeirantes de Radiojornalismo, foi correspondente no Oriente Médio para o SBT e Radio France e foi colunista de política dos jornais Folha de S.Paulo e Estado de S.Paulo. Publicou reportagens e artigos na Rolling Stone, Vogue Homem e 971mag, entre outros veículos

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