Opinião – Em sistemas complexos, você geralmente é o último a saber

19/01/2021 13:44

Interesses barram informações
Aquecimento global é alvo da vez

Mais de 2 séculos (!) se passaram entre a descoberta de que frutas cítricas curavam o terrível escorbuto, causa frequente e generalizada de morte entre marinheiros, e a adoção oficial de fontes de vitamina C pela marinha britânica.

Hoje a informação correta caminha um pouco mais rápido ou, dependendo do ponto de vista, assombrosamente devagar: para ficar no mesmo contexto, da pesquisa à prática clínica, o conhecimento médico leva algo como 17 anos para ser alterado.

Em sistemas sociais complexos, esse atraso é regra. Quando a informação chega, já processada, pode ser tarde demais. O atraso, entretanto, é relativo, porque cada fenômeno tem sua escala temporal.

Pode ocorrer em décadas, tempo que levou para se jogar fora aquela obesogênica pirâmide alimentar da década de 1980, ainda hoje encontrada com destaque em um famoso parque de diversões infantis em São Paulo.

Pode levar meses ou dias, o que é crítico em fenômenos não lineares.

Quantos meses demoramos para perceber que vivíamos uma pandemia? E quando decretar um lockdown? O primeiro-ministro inglês, Boris Johnson, foi muito criticado porque dias de indecisão multiplicaram o número de mortos por lá. E aqui, com as novas variantes de covid-19,  mais transmissíveis, circulando loucamente?

Mas antes o problema fosse só o atraso.

É útil fazer uma analogia com um duto que leva água (o conhecimento que mapeia melhor a realidade) por milhares de quilômetros.

Só que tem muita coisa para atrapalhar o processo. Primeiro porque essa água passa por uma infinidade de filtros e validações que existem não em um vácuo, mas em redes de pessoas de carne e osso, sob influência dos mais diversos vieses e interesses.

Depois, o líquido da nossa analogia ainda é processado por “estações de tratamento”, como a mídia ou os parlamentos, a quem cabe digerir a nova visão de mundo, o que é longe de ser trivial.

CHEIRO RUIM    

A sociedade é prejudicada quando não há duto para levar a água da informação, quando o duto está bloqueado ou quando o líquido fica empoçado ou chega contaminado às torneiras de consumo.

Um bom exemplo de dutos inexistentes foi a “surpreendente” queda de um viaduto na cidade de São Paulo há 2 anos. Infelizmente, a falta desses canais estruturados é muito comum na administração pública brasileira.

Já a criação de um duto costuma trazer bons resultados. Nos EUA, na década de 1980, passou-se a divulgar uma lista da vergonha com as empresas que mais poluíam o ar naquele país. Com os dados chegando a órgãos essenciais, como a mídia e o congresso, rapidamente criou-se uma pressão para que os próprios poluidores tomassem providências. Funcionou.

Mas há dutos propostos que nunca saem do papel por interesses outros. A tributação do carbono, por exemplo, levaria à sociedade global uma informação essencial (o preço) sobre as emissões descontroladas que tanto problema têm nos causado.

Por sua vez, existem dutos que são bloqueados de propósito, como fez a ditadura militar com o surto de meningite na década de 1970 em São Paulo, atrasando as ações de saúde pública. Porém a doença se espalhou tanto que rompeu a vergonhosa barreira, às custas de muitas mortes inocentes.

Outra situação é aquela que a informação até flui, mas fica empoçada, sem que seja bem entendida ou sem mobilizar respostas efetivas. Isso é comum com fenômenos complexos, de entendimento praticamente impossível em sistemas políticos marcados pela superficialidade e povoados por gente despreparada, como o nosso.

Exemplo claro: enquanto o desmatamento da Amazônia e as temperaturas globais disparam ano a ano, quando é que perceberemos a relação disso com a produção agrícola e com o baixo nível dos reservatórios no Sul e Sudeste do nosso país?

O que nos leva ao pior caso, que é quando a água (o conhecimento) é contaminada de propósito. É a regra quando há fortes interesses econômicos envolvidos.

O Brasil, nessa linha, é pródigo em rasgar dinheiro público em renúncias fiscais absurdas (“socorrendo” esse ou aquele setor econômico), mas a sociedade simplesmente nem entende que existe um problema, porque quem se beneficia do status quo promove narrativas sedutoras e tem canais de influência política.

Recentemente, ao tentar reduzir as quase duas Zona Franca de Manaus que o Estado de São Paulo rasga em benefícios fiscais, o governo Doria, que comunicou mal a coisa, foi bombardeado por jornalistas que reproduziram um discurso favorável às generosas meias-entradas tributárias. Marcos Lisboa, com razão, pira.

No século passado, esse jogo aconteceu em nível global com a indústria do cigarro, que produziu muita fumaça para esconder a ligação com o câncer e outras doenças, até que, como no caso da meningite, 100 milhões de mortes tornassem evidente a verdade.

E é o que está acontecendo hoje com a emergência climática. Estamos assustadoramente próximos do limite simbólico de 1,5°C de aquecimento do planeta. Não está dando mais para disfarçar o cheiro ruim que sai da torneira.

 

 

 

 

Por Hamilton Carvalho, 48 anos, estuda problemas sociais complexos. É auditor tributário no estado de São Paulo, doutor e mestre em Administração pela FEA-USP, ex-diretor da Associação Internacional de Marketing Social, membro da System Dynamics Society e da Behavioral Science & Policy Association. É filiado à Rede Sustentabilidade.

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