Opinião – O Brasil está isolado de quem, cara pálida?

26/01/2021 10:57

Relações internacionais são complexas
Chegada de Biden não nos abala

Antes de espernear no berçário, é hora de comemorar nas arquibancadas (naturalmente uma metáfora, já que as aglomerações estão proibidas): os problemas da humanidade terminaram! Começou o paraíso: #partiugenocida (por que mesmo virou moda chamar os conservadores de “genocidas”? É isso e “narrativa”: não há como conversar com um “progressista” e não esbarrar com essas palavras pelo menos uma vez por encontro). Mas, o fundamental: sem Trump, não haverá mais problemas, a Casa Branca não será mais branca, será imaculada. O império norte-americano será um grande parque temático, cheio de duendes, fadas, um reino encantado….

Agora, a parte sombria…

Nós estamos isolados: buáááááá!!!!

Somos a criancinha peralta do jardim de infância que foi colocada de castigo. Ora, minhas senhoras e meus senhores, até quando essas abordagens in-fan-tis sobre o mundo e, sobretudo, sobre nós mesmos vão se perpetuar nos artigos da imprensa e nos comentários dos luminares de plantão? Esse, sim, é o verdadeiro e incurável complexo de vira-lata: a ideia de que temos de seguir a professorinha da sala, no caso o Tio Sam, ou ficaremos trancados na hora do recreio. Essa ideia maniqueísta de um conto de fadas de bruxas más e princesas virtuosas. O Brasil, o país, a nação, não está isolada do mundo coisa alguma. O que está isolada do Brasil é a visão de muitos brasileiros que falam besteiras sobre o país, apesar de pronunciadas com pompa e circunstância de uma erudição ou uma relevância bolorentas.

Agora com Joe Biden, quem é mesmo o “guardião” da integridade absoluta para “isolar” moralmente um país como o Brasil? A democracia norte-americana, que há algumas semanas sofreu o constrangimento mundial de passar vergonha, durante uma invasão de vândalos ao Congresso do país, no coração da capital do Império? Os veneráveis sábios de Wall Street, que levaram a economia mundial à ruína em 2008 com uma pirâmide de papéis fraudulentos e, pior ainda, rasgaram os cânones do liberalismo para receber dinheiro público na veia e se salvarem da quebradeira? E quero deixar bem claro: eu amo os Estados Unidos. Eu amo a cultura norte-americana e amo grande parte dos valores desse grande país. Mas respeito e admiração são totalmente diferentes de genuflexão, de colocar o Brasil perante qualquer país e utilizar apenas os critérios dos outros para nos condenar, como se fôssemos menininhos ou menininhas, tutelados ou tuteláveis.

No caso concreto, porque muita gente não gosta do atual governo, as posições dissonantes adotadas pela gestão em curso –eventualmente erradas, como a de todos os governos, sempre, mas com alguma dose de acerto, como todos os governos, sempre também– são caricaturadas como “isolamento”, erros “terríveis” da diplomacia, risco de nos tornarmos “párias”. Senhoras e senhores, falem sério! Párias como? O Brasil é signatário do Tratado de não-proliferação de armas nucleares, gostem ou não é uma democracia em pleno vigor, adota uma economia de livre mercado. Ou Paulo Guedes agora representa uma “ameaça” à escola de Chicago??? O que nós não somos é outra coisa: o quinquagésimo primeiro Estado norte-americano, nem colônia europeia. Nós somos o Brasil. Uma nação continental de mais de 200 milhões de pessoas e que pode, sim, ter as suas posições. Ainda mais em temas que estão longe de carimbar o país como “inimigo” do mundo.

Os mais enfadonhos argumentam que os interesses nacionais devem obedecer a um mínimo de “coerência” na esfera internacional. Como assim, cara pálida? Faço essa mesma pergunta que os chefes peles vermelhas faziam aos “cowboys” dos velhos filmes do “Far West”. A mesma coerência da guinada de Barack Obama ao restabelecer o diálogo com Cuba, inclusive pisando na ilha de Fidel como presidente? A mesma coerência de Trump ao encher de mimos o ditador da Coreia do Norte, antes odiado, mantendo com ele audiências públicas e presencias como presidente? Eles erraram? Quem sou eu pra dizer? Mas isso mostra que o único dogma da política externa é não ter dogmas. Ou Stálin não se aliou a Hitler? E depois Churchill a Stálin contra o nazismo? O que significa que um país pode eventualmente não estar eternamente numa camisa de força apenas porque alguns imaginam que as relações internacionais têm de ser um espetáculo de “relações públicas”. Que temos de ser o “mocinho”. Às vezes sim, mas nem sempre.

Muito se fala sobre o “perigo” para o Brasil do fato do presidente Bolsonaro estar “desalinhado” com a gestão do presidente Biden. E eu me pergunto: por que o presidente brasileiro fez declarações inamistosas com relação ao presidente que está para assumir a Casa Branca, então o Brasil está “isolado”? O que vão fazer? Colocar outro Brasil no mapa da América Latina, um Brasil “integrado”? Como se as relações sólidas, profundas e históricas entre estas duas grandes nações pudessem ser tão frágeis a ponto de serem mutiladas por conta de fuxicos políticos passageiros e a despeito dos fundamentos, dos interesses concretos e pragmáticos, que as unem? Na questão da China, a mesma coisa. Quando há vacina, o governador de São Paulo é um gênio e o Instituto Butatan é paulista. Quando faltam insumos para a vacina, a culpa é do presidente e suas picuinhas com os chineses e do governo federal. E não estão politizando o assunto não, né? E se o presidente “trocar” o 5G pela CoronaVac não vai ter sido um grande lance de diplomacia não? Terá sido “rendição”? Valei-me!

A rigor, eu me pergunto mesmo até que ponto o alinhamento que norteou a política externa brasileira durante a Guerra Fria e, depois, com a globalização, com o unilateralismo da América pode ser aplicável hoje, num mundo multipolar. Getúlio Vargas, o estadista, foi “desalinhado” oscilando como um João Bobo (de bobo não tinha nada) entre os Aliados e o Eixo durante a 2ª Guerra, até embarcar na canoa vencedora, depois de obter o “dote” da construção da Companhia Siderúrgica Nacional, o passo inicial para a industrialização brasileira. Fez ele errado? A China, nosso maior parceiro comercial está aí. Os Estados Unidos estão aí. A Europa está aí. E o Brasil? Tem de ter alinhamentos automáticos ou flertar no salão das nações? Quer dizer que adotar a tecnologia de 5G norte-americana e não a chinesa (que é melhor e mais barata) é “isolamento” em relação a Washington? Valei-me!

Até que ponto essa lenda do multilateralismo é benéfica para o próprio Estados Unidos? O multilateralismo nasceu, no pós-guerra, como uma manifestação do domínio norte-americano (tinha a bomba atômica, a União Soviética não) e, depois, como fachada da bipolaridade da Guerra Fria. Nunca foi efetivamente praticado. Foi mais pantomima, o sindicato dos donos do mundo. Com a queda do Muro de Berlim e a globalização, parecia que os Estados Unidos poderiam exercer pleno poder. Mas a China, livre das amarras dos mecanismos multilaterais, ganhou competitvidade e escala.

Tenho dúvidas, sinceramente, se o melhor caminho para os EUA  que antes da 2ª Guerra– sempre foi de autonomia é o de seguir rebanhos. Sobretudo com a pista livre para a China. Falo isso porque acho que os valores norte-americanos importam muito para todos nós no Ocidente.

Seja como for, seja lá o que for certo, dogmas? Só se pode seguir um caminho e o caminho é o já conhecido? Em tudo, sempre? Claro que ousadia não pode justificar irresponsabilidade, assim como prudência não deve ser um álibi para a mesmice. Bordões frases feitas, por favor, não contribuem para um debate. Este é o meu ponto.

Muito se fala do “meio ambiente”. Mas até que ponto esse mantra não é também uma nova Inquisição, destinada a converter os “selvagens” pelos colonizadores, sob a pátina de “princípios” morais e elevados? “Beija a floresta e converte-se à preservação!”. O fato é que zelar pelo meio ambiente é um valor universal que diz respeito a toda humanidade, mas também é fato que o Brasil é o maior produtor de alimentos do mundo e estigmatizar-nos não está totalmente dissociado de interesses econômicos também. Ou não? Os vilões somos nós e os outros mocinhos bem intencionados?

Resumo da ópera: o mundo não é simples, as relações internacionais não são simples e o Brasil, sim, o Brasil não é simples. Tornamo-nos uma sociedade complexa. Então bordões como “isolamento” são simplistas demais, rasos demais, infantilizam demais os debates para resumir a complexidade da inserção de nossas relações internacionais.

É isso aí, cara pálida.

 

 

 

 

Por Mario Rosa, 55 anos, é jornalista, escritor, autor de cinco livros e consultor de comunicação, especializado em gerenciamento de crises.

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