Opinião – A privatização da injúria e a elevação dos fracos (censura pós-Trump – parte 2)

27/01/2021 11:28

Twitter constitui Estado-nação
Permite controle sobre passado

No livro 1984 –a obra-prima de George Orwell com quantidade infindável de presságios–, o governo tirânico da imaginária Oceania engana a opinião pública não apenas manipulando o presente, mas também alterando o passado. O governo do Grande Irmão tenta fazer a população acreditar que sua vida está melhorando, e um dos artifícios que usa para isso é a modificação de registros históricos. Assim, por exemplo, quando o governo diminui a quantidade de comida permitida aos cidadãos, ele adultera jornais antigos e finge que a quantidade anterior era menor e, portanto, está sendo aumentada, não diminuída. O registro histórico –recente e antigo– é peça fundamental para a evolução da sociedade, e eu me sinto boba falando essa platitude. Mas ela precisa ser enfatizada porque em plena era do suposto mercado livre, e bem distante da tirania comunista descrita por Orwell, corremos o risco não apenas de permitir, mas de apoiar a alteração de fatos e notícias. Na verdade, isso já está acontecendo.

Em março de 2020, o Twitter deletou vídeos de Jair Bolsonaro sob a justificativa de que eles propagavam fake news. Os vídeos, contudo, eram verdadeiros: um deles mostrava Bolsonaro sem máscara entre apoiadores, em plena pandemia; o outro mostrava o presidente recomendando um tratamento para a covid-19 cuja eficiência nunca foi confirmada pelo consenso da ciência comercial, a hidroxicloroquina. Já aqui é possível perceber um dos efeitos não-calculados da Sagrada Interferência, aquela que se acredita bem-intencionada: se para alguns os vídeos se tratavam de fake news e deveriam portanto ser banidos, para outros eles eram um registro da inépcia e despreparo do presidente da República, e deveriam ser mantidos como evidência. Mas o Twitter eliminou aquela evidência da história, e sob a justificativa de estar coibindo a mentira, criou ele própria uma outra: a farsa implícita de que Bolsonaro nunca falou aquilo.

Um caso recente ilustra melhor o risco ao qual me refiro. Há poucos dias a Anvisa aprovou o uso da CoronaVac, a vacina feita pelo Butantan em parceria com uma estatal chinesa. Diante da celebração e alívio de milhões de brasileiros, Bolsonaro disse em frente às câmeras que “a vacina é do Brasil, tá? Não é de nenhum governador não, é do Brasil”. Vejam só: se o Twitter tivesse usado o mesmo critério de fake news que aplicou em março do ano passado, a empresa poderia ter deletado um tweet do presidente dizendo exatamente o que ele agora tenta desdizer: que a CoronaVac era “a vacina chinesa de João Doria”.

Em outras palavras, se não fosse por um tweet do próprio presidente, que por sorte não foi apagado pelo Twitter, talvez Bolsonaro estivesse agora dizendo que nunca falou o que disse, e que tudo não passa de invenção da imprensa. O tweet ainda está lá, comprovando que Bolsonaro mudou de narrativa dramaticamente, mas eu mostro aqui o print para o caso de o Twitter querer alterar mais esse registro histórico. Há 10 séculos o filósofo Solomon ibn Gabirol explicou por tabela a importância desse tipo de registro: “Das palavras que não disseste, tu és senhor; daquelas que disseste, tu és escravo”.

New York Times fez uma reportagem que conta como o Twitter tomou a decisão de banir Trump por suposta incitação à violência (assunto do qual tratei na coluna da semana passada), e como essa decisão teria desagradado ao próprio Jack Dorsey, o fundador da empresa. O que se vê nessa reportagem é que os critérios são incertos, e o método decisório é indefinido, dando margem a todo tipo de arbitrariedade. Existem diversos exemplos de como a incitação à violência não é um critério usado de forma equânime pelo Twitter. Um deles é essa postagem do ex-presidente iraniano e hoje supremo líder e chefe de Estado aiatolá Khamenei, em que ele se refere a Israel como “um tumor cancerígeno maligno” que “precisa ser removido e erradicado”.

O maior problema de tudo isso, talvez, é que as leis que existem para coibir a incitação à violência, e a difamação, injúria e calúnia, estão sendo gradualmente substituídas pelo poder do monopólio privado sobre as redes sociais. Dizer que o Twitter ou o Facebook são empresas privadas e que, portanto, podem criar as leis que acharem adequadas é de uma simplicidade intelectual constrangedora. Essas plataformas não são apenas empresas privadas, como um bar que proíbe a entrada de cliente sem camisa –elas formam um monopólio que hoje tem mais poder que muitos países, com um PIB e população muito maiores.

Jack Dorsey, ele mesmo um dos proprietários dessa nova versão de Estado-nação, alerta sobre o risco desse poder nas mãos de alguns poucos: “[O banimento de Trump do Twitter] lança um precedente que eu sinto ser perigoso: o poder que um indivíduo ou uma empresa tem sobre uma parte da conversa pública global”. Eu também fui suspensa do Twitter, e não foi por um conselho de funcionários da empresa, mas por um único cidadão ofendido.

A história a seguir merece um alerta porque contém cenas fortes de inanidade e irrelevância, e eu só a conto aqui para mostrar como os critérios de banimento e suspensão estão causando outro mal irreparável: a valorização de uma das piores características humanas, tão abjeta e imoral que mal se vê no mundo dos animais –o vitimismo doentio. Na 2ª feira (11.jan.2021), eu vi uma discussão que envolvia uma pessoa que conheço. Vou chamar essa pessoa de José. José disse a um certo anônimo, escondido por trás de um pseudônimo, algo equivalente a “vai pentear macaco”, que na sua versão regional era “vai mamar um jegue no cio” Mas a tal pessoa não gostou, e acusou José de ser homofóbico e racista. E a partir daí, ele começou a denunciar as contas de pessoas que repetiam o insulto, e foi conseguindo fechar algumas delas. Até que alguém perguntou se ele mamou ou não o jegue, e eu disse que “mamou, por isso denunciou a conta”. Foi isso que imaginei: instado a mamar, a pessoa literalmente seguiu a ordem de um ser superior e foi prejudicado irremediavelmente ao ser incitado à autoviolência. Em menos de 3 horas, o Twitter recebeu a reclamação e suspendeu a minha conta, sem nenhum aviso prévio. Eu recebi a mensagem de que deveria apagar aquele tweet ou teria que ficar ajoelhada no milho (sem acesso ao meu perfil). O Twitter avisou que eu estou apenas impedida de postar novos tweets, mas isso é mentira. Eu não posso ler tweet nenhum, de ninguém, e toda vez que tento entrar no Twitter vejo a seguinte página:

Pior: ninguém sabe que eu fui suspensa, porque o Twitter não avisa isso no meu perfil. Eu só serei reabilitada, aceita como cidadã respeitável daquela comunidade, depois que eu apagar o tweet ofensivo (ao que me recusei, mas que o Twitter já apagou) ou arguir meu caso em menos de 200 caracteres e torcer para que ele seja aceito.

Descobri depois que o usuário que me reportou é o tipo mais repulsivo entre os x-9, não apenas me “denunciando”, mas mentindo que fui lhe “assediar” (com apenas um tweet), e se dando ao trabalho de procurar pessoas famosas que me seguem e adicionando a sua arroba em tweets seguintes, perguntando a essas pessoas por que razão elas seguem um ser-humano como eu.

Pensem nisso por um minuto: existe uma coisa que todo pai e mãe decente ensinam aos filhos desde pequenos –não seja dedo-duro. Isso deve ser a lição mais universal entre famílias do mundo inteiro. Isso é porque qualquer ser com um mínimo de sabedoria entende que estimular esse tipo de comportamento é receita certa para o fracasso moral. Eu já fui acusada algumas vezes de racismo no Twitter quando mostrei foto do meu padrinho, que é negro e venezuelano. Isso, fui informada, é um tipo de racismo. Eu poderia ter revidado não só com reclamação ao Twitter, mas com um processo, porque racismo é crime. Mas eu preferi resolver ali mesmo, no braço, e o teria feito na vida real no braço mesmo (obrigada, pai, por me colocar nas aulas de karatê).

O usuário que me reportou preferiu me denunciar –intrigantemente deixando vários homens de fora da denúncia, alguns deles ainda hoje lhe recomendando que vá mamar o tal jegue. Os tweets ainda estão lá. Um desses homens preferiu não ofender, e decidiu bloquear o tuiteiro. Mas ele também não gostou do bloqueio, e como não podia denunciar o bloqueio ao Twitter, fez um print e expôs o cara, lamentando publicamente a sua recusa ao diálogo.

Depois de ter sua decisão questionada por pessoas inteligentes (inclusive uma mulher que nunca vi na vida, mas que tem argumentos brilhantes), o usuário decidiu deletar seus tweets –mas o meu perfil continua suspenso. E só pra terminar essa história ridícula, cortesia de um personagem triste, sem propósito, provavelmente extremamente vazio e com noção irrefutável da sua inferioridade: o tal José, autor da bela frase sobre o cio dos jegues, acusado de homofobia e racismo, é negro e nordestino*. Mas quem teve o poder de eliminar as pessoas do Estado-nação do Twitter foi o outro usuário, que se tornou poderoso ao magnificar sua fraqueza. É isso que estamos estimulando, senhores: um jogo no qual o vencedor é aquele que se considera o mais ofendido, o mais fraco, o mais vil. Imagine o tipo de sociedade que estamos ajudando a criar.


*Este texto foi modificado porque identificou erroneamente a orientação sexual do José como gay. José é heterossexual.

 

 

Leia a parte 1 AQUI

 

Por Paula Schmitt é jornalista, escritora e tem mestrado em ciências políticas e estudos do Oriente Médio pela Universidade Americana de Beirute. É autora do livro de ficção “Eudemonia” e do de não-ficção “Spies”. Venceu o Prêmio Bandeirantes de Radiojornalismo, foi correspondente no Oriente Médio para o SBT e Radio France e foi colunista de política dos jornais Folha de S.Paulo e Estado de S.Paulo. Publicou reportagens e artigos na Rolling Stone, Vogue Homem e 971mag, entre outros veículos.

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