Opinião – Mais uma tentativa de ataque a soberania tecnológica

25/02/2021 12:13

Ação contesta Lei de Biossegurança
Deve ir a julgamento no Supremo

Colheita de milho na região do PAD-DF e Cooperativa do DF (COOPA-DF) Sérgio Lima

Os antivacinas e os antitransgênicos estão em pé de igualdade no time dos anticiência. Utilizam teorias conspiratórias dignas dos desenhos do Scooby-Doo. Ou seja, só esses iluminados sabem algo que nós, os mortais que confiam nos métodos e práticas científicas, não temos tamanha perspicácia para compreender “o que está por trás”.

No início de abril de 2020, supus, no artigo, que os antitransgênicos fossem se retratar, já que as vacinas contra a covid-19 com maior chance de sucesso, muito provavelmente, seriam transgênicas. Pura ilusão. Na última semana, divulgou-se a notícia de que será julgada pelo STF (Supremo Tribunal Federal), em breve, uma ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade) protocolada em 2005, que questiona vários dispositivos da Lei de Biossegurança (2005). A torcida antitransgênica está eufórica.

Acredito que o STF não vai se posicionar favoravelmente à ADI. Mas como absolutamente tudo pode acontecer no Brasil, é preciso fazer alguns esclarecimentos urgentes sobre a Lei de Biossegurança.

O cenário do início deste século era de campos experimentais vazios e cientistas aguardando o cumprimento de inúmeros ritos burocráticos, pareceres, licenças e autorizações das autoridades públicas para que pudessem dar continuidade às suas pesquisas com transgênicos. Esse caminho institucional foi apelidado de “caminho do inferno” pelos cientistas.

Um dos maiores problemas impostos era que os experimentos com transgênicos somente podiam ser instalados (ainda que em áreas de 40 m², por exemplo), se o pesquisador obtivesse o EIA/Rima (Estudo de Impacto Ambiental/Relatório de Impacto no Meio Ambiente), o mesmo exigido para grandes empreendimentos, como usinas hidrelétricas.

A agricultura nacional estava correndo o risco de ficar para trás também, já que nossos competidores internacionais, como Estados Unidos, Canadá e Argentina, estavam avançando com o uso de transgênicos e, no Brasil, os transgênicos eram proibidos para uso comercial.  Outro impedimento grave é que era proibido fazer pesquisa com células tronco embrionárias, o que deixava os cientistas e as pessoas portadoras de doenças degenerativas desesperadas.

O fato é que o país estava imerso num verdadeiro emaranhado de leis e normas para o tema da biotecnologia. Muitas delas eram conflitantes. Faltava também clareza nas atribuições de cada órgão. O Brasil precisava, com a máxima urgência, de uma lei que estabelecesse um processo decisório claro e objetivo em relação à biotecnologia.

Preocupado com essa questão, em 2003, o presidente Lula enviou o Projeto de Lei 2.401/2003, ao Congresso Nacional, com a finalidade de retirar a sobreposição de competências entre órgãos, minimizar os conflitos judiciais e oferecer segurança institucional a esse campo de atividades.

O projeto de lei foi intensamente discutido durante sua tramitação no Congresso. De um lado, alguns congressistas se submeteram à retórica da “Campanha por um Brasil livre de transgênicos” (criada em 1999 por ONGs nacionais e internacionais) que fez forte lobby para que o texto da lei cristalizasse o tal “caminho do inferno”. Ou seja, queria manter a quase instransponível burocracia.

Outros deputados e senadores escutaram os cientistas brasileiros e estudaram detalhadamente os relatórios científicos provenientes da Royal Society da Inglaterra e de academias nacionais de ciências de vários países, da China aos Estados Unidos. Todos afirmando explicitamente a segurança dos transgênicos.

Para a sorte do Brasil, a ciência ganhou da retórica dessas ONGs. A Lei de Biossegurança foi sancionada em 2005. Está entre as mais rígidas do mundo. É uma lei que autoriza a pesquisa com células-tronco embrionárias e oferece também agilidade à pesquisa com transgênicos.

De acordo com a Lei de Biossegurança de 2005, a CTNBio (Comissão Técnica Nacional de Biossegurança) passou a emitir decisões técnicas, autorizando a liberação comercial de um determinado produto transgênico, somente após o cumprimento de uma série de requisitos previstos na lei, em decretos e normativas. É uma comissão formada por 54 membros (27 titulares e 27 suplentes), todos com no mínimo, título de doutor em diversas especialidades (entomologia, microbiologia, ecologia, genética, biologia molecular etc.). Essa diversidade garante que todos os aspectos referentes às análises de biossegurança de transgênicos sejam realizadas. Todas as decisões ocorrem por maioria absoluta em sessão plenária.

A CTNBio faz o credenciamento prévio de todas as instituições públicas e privadas que pretendam trabalhar com transgênicos, conferindo o Certificado de Qualidade em Biossegurança, quando as características das instalações da instituição estão de acordo com uma série de critérios. Avalia as atividades experimentais que são realizadas fora do ambiente de laboratório. Inclusive, muitas tecnologias têm seu desenvolvimento interrompido ainda na fase experimental. Também analisa quais atividades relacionadas aos transgênicos que apresentem potencial impacto ambiental. Quando a análise de risco indicar que a atividade é potencialmente causadora de degradação ambiental, encaminha o pleito ao órgão afeito ao registro e providências a seu cargo. Em mais de 25 anos de aplicação no Brasil, esse sistema tem-se mostrado seguro para a aprovação e uso de plantas, animais, microrganismos e vacinas desenvolvidas com o uso da engenharia genética.

Apesar de toda a solidez da Lei de Biossegurança, do sucesso do uso de plantas, vacinas, medicamentos transgênicos e de mais de 100 vencedores do Prêmio Nobel afirmarem que a luta contra os transgênicos pode ser considerada um crime contra a humanidade, os antitransgênicos continuam com a mesma retórica mofada, aguardando ansiosamente que o STF acate a ADI contra a Lei de Biossegurança.

Enquanto isso, continuam sem respostas as perguntas do cientista Barreto de Castro na obra “A História da ciência que vivi”: A que interesses servem essas campanhas contrárias aos transgênicos? Que razões existem para justificar esses crimes contra o Estado? Por que negar ao agricultor brasileiro o que não foi negado aos agricultores dos Estados Unidos, do Canadá, da Argentina, Austrália e China?

 

 

 

 

Por Maria Thereza Pedroso, 51 anos, é pesquisadora da Embrapa Hortaliças. Doutora em Ciências Sociais pela UnB (2017), Mestre em Desenvolvimento Sustentável pela UnB (2000) e Engenheira Agrônoma pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (1993).

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