Opinião – Decisão de Fachin deixa gosto amargo de impunidade na boca

09/03/2021 14:52

Ministro atende a pedido de Lula
Risco de prescrição é concreto

O OVO DA SERPENTE

Lula foi condenado nos rumorosos casos do tríplex do Guarujá e do sítio de Atibaia. Entretanto, em surpreendente decisão monocrática datada de ontem, o ministro Fachin, seguindo tendência do STF de espalhar os casos da Lava Jato, acolheu pedido da defesa em HC, anulando atos processuais em virtude da incompetência do juízo de Curitiba, remetendo os casos para Brasília, o que o torna novamente elegível, não obstante deva a matéria ser submetida ao pleno do STF em recurso já anunciado pelo PGR.

Fica um sabor amargo de impunidade na boca, decorrente da decisão de Fachin, pois os casos serão redistribuídos para varas em que não há juízes focados neste trabalho de combate à corrupção de grosso calibre. Pelo contrário –estão abarrotadas de serviço, e o risco de prescrição é real e concreto. E diante da idade do acusado, estes prazos prescricionais caem pela metade. Parece que o sistema não tem a força suficiente para punir os mais poderosos. Em algum momento, sucumbe.

Um nítido descolamento da realidade levou o presidente Bolsonaro a declarar que não existe corrupção em seu Governo e que por tal razão, a Lava Jato estava chegando ao fim, sem qualquer cerimônia, por obra da PGR, cujo titular foi nomeado pelo presidente sem respeitar a lista tríplice sugerida pela ANPR. Enquanto isto, seu próprio filho adquire mansão de 1.100 metros quadrados em plena pandemia em Brasília, por seis milhões de reais, sendo que o tabelião ocultou na escritura deliberadamente dados do senador Flávio Bolsonaro.

No pós-Lava Jato se percebe no Brasil uma ofensiva organizada pelo campo político para anular condenações e enfraquecer significativamente a legislação anticorrupção, repetindo-se o roteiro vivido pela Itália após o trabalho da Mãos Limpas. Chegou-se a tentar estabelecer blindagem constitucional aos parlamentares, dificultando suas prisões e punições, sem debate parlamentar, ao arrepio da Constituição, tentativa que felizmente não teve sucesso em virtude da forte reação contrária de diversos setores da sociedade.

Era previsível que tal trabalho histórico, gerasse reações de atingidos. O ex-presidente Lula, condenado por graves crimes contra a administração pública, desde sempre quis construir a versão de ter sido vítima de perseguição política. Marcelo Odebrecht, bilionário que comandava a mais poderosa empreiteira brasileira, jamais imaginaria, nem nos piores pesadelos, que permaneceria preso anos a fio, pois se acostumou à impunidade.

A Odebrecht criou o departamento de operações estruturadas: planejava e estruturava a logística da gestão da propina como sendo ramo legítimo do negócio. Coexistia cinicamente com o compliance. Com reduções de pena aos criminosos que delatavam os outros envolvidos (colaborações premiadas), a corrupção foi retirada de debaixo do tapete.

De outro lado, os procuradores vieram à mídia, ao longo de sua atuação na Lava Jato, para prestar contas à sociedade e por isso foram acusados de espetacularização. Se se entendesse haver algum exagero, seria caso de puni-los, mas não seria razoável a construção deliberada do anti-lavajatismo, nutrido pela divulgação bombástica do site The Intercept. Refiro-me ao conteúdo obtido criminosamente, em que procuradores e juiz trocam mensagens relacionadas a investigações e processos, divulgadas sob o escudo do interesse público na informação.

Esta prática de conversas entre MP, magistratura e advogados é corriqueira no Brasil. Aqui, advogados são fotografados circulando de bermuda pelos corredores da suprema corte, e oferecem e bancam luxuosos jantares a magistrados, inclusive os que julgarão seus casos – embora, neste último caso, a prática possa ser criticada.

Além de ter sido obtido criminosamente, tal conteúdo, que pode ter sido adulterado, não foi periciado, como exige a lei. Não foi confirmado pelos dialogantes, que apenas disseram genericamente que trocaram mensagens.

Não há qualquer indicativo de antecipação de decisões, fabricação artificial de provas, incriminação de inocentes ou qualquer outra violação do direito a um fair trial, até porque mais de 95% das sentenças tiveram recursos do Ministério Público e mais de 20% dos acusados foram absolvidos, com os réus assistidos pelos advogados mais caros e preparados do país, no quádruplo grau de jurisdição até o STF.

“Vaza Jato” é pura areia movediça. Aliás, The Intercept recentemente foi condenado pela Justiça a desdizer afirmações publicadas no rumoroso caso Mariana Ferrer, quando manipulou palavras visando induzir a erro os internautas, para demonizar membro do Ministério Público atuante no caso.

Todo este cenário transformou a Lava Jato em matéria-prima de primeira grandeza para a fabricação de narrativas políticas convenientes, mesmo diante dos resultados alcançados na demonstração da corrupção, incrustada em largo e diversificado espectro partidário, ensejando um processo de vitimização dos “pobres coitados corruptos processados”.

A extrema direita, na campanha do atual presidente, usou a operação como mote, convidando na sequência Moro para ser Ministro da Justiça, sem apoiá-lo concretamente nos projetos que ele propunha seguidamente para o enfrentamento da corrupção. Bom exemplo é busca pela punição efetiva do caixa dois eleitoral – financiamento criminoso de campanhas políticas.

A esquerda, por outro lado, afirmou que Lava Jato quebrou economia do país, como se a corrupção não fosse uma doença a ser eliminada para garantir a saúde da economia – ou como se o ideal fosse se omitir e não punir corruptos, a despeito da regra expressa do artigo 5 da Convenção da OCDE de que não se pode deixar de punir a corrupção em nome da preservação da economia.

Excessos devem obviamente ser sempre apurados e punidos, mas o fato é que jamais foram demonstrados. A saída de Moro da magistratura e aceitação do convite para atuar no Governo, ainda que possa ter gerado questionamentos, não pode ser condenada categoricamente – é plausível que se dispusesse a incrementar uma política pública anticorrupção – notoriamente não recebeu apoio para isto nem do Governo nem do Legislativo.

Está claro que as instituições de persecução criminal lutaram para cumprir seu papel no enfrentamento da corrupção na Lava Jato, mas não se percebe qualquer compromisso nem do Executivo nem do Legislativo no avanço desta agenda. Pelo contrário, o país tem vivido nos últimos dois anos, francos retrocessos, eclodindo o ovo da servente. A Lava Jato não tinha como fazer milagres.

 

 

 

 

Por Roberto Livianu, 52, é procurador de Justiça, atuando na área criminal, e doutor em direito pela USP. Idealizou e preside o Instituto Não Aceito Corrupção. Integra a bancada do Linha Direta com a Justiça, da Rádio Bandeirantes, é articulista da Folha de S. Paulo e do Estado de S.Paulo e é colunista da Rádio Justiça, do STF.

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