Opinião – O encanto acabou

13/03/2021 11:48

IGP-M vs Aluguel
‘Romance’ chegou ao fim
Contratos dispararam
Outros indicadores podem balizar
Renegociar para não judicializar

O contrato de locação é um romântico incorrigível. Embora vivido e experiente, nunca deixou de sonhar com o amor, ou melhor, com o indexador ideal. Não se pode dizer que foram poucas as relações mantidas entre ambos ao longo do tempo. Mas sempre faltava algo, aquela sensação de preenchimento, de completude da alma.

Foi aí, então, que o contrato de locação conheceu o IGP-M, no início da década de 1990. Analisando friamente a dupla, a chance de não dar certo era maior do que a de funcionar a relação. O IGP-M era alvissareiro, complexo, atraente e prometia unir a qualidade de outros indexadores com pitadas de internacionalidade. Não teve jeito: o contrato de locação apaixonou-se perdidamente. Foi amor à primeira vista.

A paixão desenfreada transpôs as possíveis diferenças entre os dois. O IGP-M, apesar de não nutrir o mesmo sentimento pelo contrato de locação, notou o efeito que lhe causara e tratou de comportar-se à altura. Assim é que, ressalvadas algumas poucas desavenças, os dois mantiveram duradouro, feliz e estável relacionamento. Tão feliz que, aos olhos dos outros, aquela parecia ser a relação ideal e acabou virando um modelo a ser seguido. A simbiose foi tamanha que, com o passar dos anos, era impossível pensar em um sem o outro.

Esta história de amor, no entanto, parece ter chegado ao fim. O descolamento do IGM-P da condição de indexador ideal do contrato de locação é tão grande no atual momento que é impossível imaginar uma reconciliação.

Tendo em mente que, em linhas gerais, um indexador é a ferramenta utilizada para reajustar contratos de modo a repor o valor da moeda no tempo, diante dos efeitos da inflação, é inaceitável que o IGP-M tenha acumulado elevação de 23,41% nos últimos 12 (doze) meses. Não poderia ter feito isto com os contratos de locação, mas fez. Afinal, esse fenômeno tipicamente brasileiro – indexar contratos – no caso concreto apaixonou-se por um índice geral que tem em sua composição a variação de preços internacionais, como será visto mais adiante.

A bem da verdade, a complexidade do IGP-M acabou por tornar sem sentido sua presença nas locações. Por ser um índice híbrido, que sofre influência direta da taxa de câmbio, é evidente que sua aplicação não se presta mais à função à qual foi designada. É inadmissível, por exemplo, que a alta do preço do minério de ferro na China ou a majoração da soja na Rússia influenciem no índice de correção de um contrato de locação residencial de um pequeno apartamento no centro de uma cidade brasileira.

Porém, é isso o que acontece e, assim, em um estranho ano como o de 2020, a adoção do IGP-M para a indexação dos contratos de locação encerra muito mais um ganho para o locador do que a reposição do valor da moeda no tempo, na exata medida em que não reflete a inflação, aquela que se vê nas gôndolas dos supermercados, nas prateleiras das farmácias ou nas estantes das livrarias, pois traz em seu bojo a variação cambial que atua de modo inclemente sobre as commodities.

Quando uma relação tão longa e enraizada como essa chega ao fim, o que se espera são medidas de respeito e protetivas, que visem mitigar os efeitos da separação. Neste caso, significa que os contratos devem ser renegociados para se evitar a judicialização em massa. Afinal, o encanto pelo IGM-P acabou, mas, como para tudo na vida, há sempre um novo dia, um novo amor e, certamente, uma(s) vacina(s).

 

 

 

 

Por Renato Spolidoro, é graduado em Direito e integra a banca Zürcher Advogados.

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