Opinião – Maior regressão econômica e social da história republicana tem de parar

19/04/2021 21:37

Renda per capita afunda
Pobreza e fome aumentam
Desigualdade volta a crescer

Moedas, dinheiro, Real. Brasilia, 03-09-18. Foto: Sérgio Lima/Poder360

É difícil que o Brasil tenha vivido período de maior regressão social e econômica do que os últimos 7 anos, pelo menos em toda a sua história republicana. Mesmo considerando as travas da República Velha, e os quase 30 anos, num total de 130 anos, nos quais o país esteve sob o domínio de ditaduras escancaradas, não se tem notícia de nada parecido antes dos tempos atuais.

Parte desse retrocesso, sem dúvida, foi acentuado pelos choques, abruptos e devastadores, da pandemia de covid-19, que pegou o governo Bolsonaro em seu 2º ano de mandato. Mas é importante não esquecer que a pandemia tão somente potencializou problemas e dificuldades anteriores ao coronavírus. Se cabe a ela alguma culpa é a de acelerar a marcha a ré que já vinha engatada.

Com idas e vindas, aos trancos e barrancos, o país avançou, urbanizou-se, diversificou a indústria do começo do século 20 até meados da 2ª década do século 21. Até os anos 80 do século passado, cresceu a uma média anual de 7,5% –uma das maiores, se não a maior do planeta, no período–, embora esse crescimento tenha resultado em imensas desigualdades e concentração de renda. Apesar de mais fechado do que desejável na economia, o país também se inseriu em harmonia no conjunto das nações, valendo-se de um poderoso “soft power”, tendo a cultura e sua música como carro-chefe.

Ainda que com recorrentes crises –de dívida externa, de desequilíbrios fiscais, de surtos hiperinflacionários–, o país andou para a frente. Alguma coisa, porém, desandou mais forte a partir da 2ª metade da 1ª década deste século. A economia afundou e não mais se recuperou. A população, antes tida como cordial, alegre e festeira, dividiu-se numa polarização ampla, radical e raivosa.

Não se vai aqui tentar debater as causas, apenas constatar que essa divisão, evidente a partir da reeleição à presidência, por margem mínima, da petista Dilma Rousseff em 2014, só se solidificou daí em diante. Ao mesmo tempo, as melhoras na economia e os progressos sociais obtidos, sobretudo nos governos de Fernando Henrique e Lula, foram se dissolvendo de uma maneira dramática e lamentável.

O fato é que os resultados econômicos e sociais no conjunto representado pelo breve 2º mandato de Dilma, pela também breve gestão de Michel Temer, e pelos primeiros 2 anos de Jair Bolsonaro à frente do governo foram de assustador retrocesso. A atividade econômica murchou, o mercado de trabalho encolheu, a renda per capita desabou, as desigualdades e a pobreza voltaram a crescer, o mesmo ocorrendo com a fome e a situação de insegurança alimentar.

Depois de uma das 3 maiores recessões desde 1901, que durou 11 trimestres, do 2º trimestre de 2014 até o 4º trimestre de 2016, fazendo a economia mergulhar 8,2%, a recuperação tem sido a mais lenta da história. Cinco anos depois do tombo, no fim de 2019, a economia ainda não tinha superado as perdas ocorridas na grande recessão quando voltou a afundar em 2020, empurrada para baixo pela pandemia. Em 2021, depois de 7 anos do último pico, registrado no primeiro trimestre de 2014, o PIB ainda está 4,5% abaixo daquele ponto.

Essa involução foi ainda mais regressiva para a renda per capita. Dados do FMI mostram um recuo, na década passada, de 8%. Medida por PPP (paridade de poder de compra, na sigla em inglês), a renda per capita brasileira caiu de US$ 15,4 mil para US$ 14,1 mil. No ranking de 191 países listados pelo FMI, a renda per capita brasileira desceu da 77ª posição, em 2011, para o 85º lugar, no ano passado.

A perda de renda dos brasileiros, nesses últimos anos, atingiu mais os mais pobres. De 2014 a 2019, segundo cálculos do Banco Mundial, a renda dos 40% mais pobres caiu 1,5% ao ano, enquanto os demais obtiveram ganho médio anual na renda de 0,3%. Com isso, o índice de Gini, que mede o grau de desigualdade de uma população (quanto mais perto de 1, menos desigual a amostra), e tinha avançado de 0,525, em 2015, para o pico de 0,550, em 2018, voltou a cair para 0,547, em 2019, devendo ter retrocedido ao nível de seis anos atrás, em 2020.

Retrocessos também ocorreram nos níveis de pobreza. No primeiro trimestre de 2021, depois de encerrado o auxílio emergencial do ano anterior, segundo projeções da FGV-RJ, 17,7 milhões de pessoas voltaram à pobreza. Os extremamente pobres, eram 9,5 milhões, em agosto de 2020, o equivalente a 4,5% da população, mas somavam já 27,2 milhões, quase 13% do total de brasileiros, em fevereiro passado. Em 2019, 11% da população, num conjunto de 23 milhões de pessoas, se encontravam na extrema pobreza.

Desse quadro de ampla regressão, a consequência mais dramática é a da fome e de suas sequelas, inclusive cognitivas, sobretudo em crianças. Dados do IBGE mostram ter havido, nos últimos sete anos, aumento expressivo das residências em que a falta de comida era, pelo menos, uma preocupação cotidiana. De 23% dos lares brasileiros, em 2013, o total daqueles em que rondava o espectro da fome, subiu para 37%, em 2018, indicando tendência de chegar a 40%, em 2019.

Pesquisa mais recente, de novembro a dezembro de 2020, parte de um projeto conjunto da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Universidade de Brasília (UnB) e Universidade Livre de Berlim, constatou a existência de 32 milhões de pessoas, ocupando 15% dos lares brasileiros, em situação de fome. Em situação de insegurança alimentar, ou seja, pelo menos com preocupação se haveria comida no prato no dia seguinte, são mais de 125 milhões de brasileiros, quase 60% da população.

A discussão das causas de retrocesso tão agudo é necessária, mas pode ficar para outra oportunidade. O que não pode, diante do quadro traçado, é não ter certeza de que como já está não dá mais para continuar.

 

 

 

 

Por José Paulo Kupfer, 70 anos, é jornalista profissional há 51 anos. Escreve colunas de análise da economia desde 1999 e já foi colunista da Gazeta Mercantil, Estado de S. Paulo e O Globo. Idealizador do Caderno de Economia do Estadão, lançado em 1989, foi eleito em 2015 “Jornalista Econômico do Ano”, em premiação do Conselho Regional de Economia/SP e Ordem dos Economistas do Brasil. Também é um dos dez “Mais Admirados Jornalistas de Economia”, nas votações promovidas pelo site J&Cia. É graduado em Economia pela Faculdade de Economia da USP.

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