Opinião – Enquanto mentiras dominam a CPI da Covid, boiadas passam no Congresso

19/06/2021 08:18

Rolo compressor do Centrão
LOA, meio ambiente, Eletrobras
Retrocessos no convívio social

Plenário da Câmara

O rolo compressor do Centrão na Câmara dos Deputados está formando um jeito singular de levar adiante as pautas do governo Bolsonaro: o que vem ruim do Executivo é piorado no Legislativo.

Quase não tem havido limites para as boiadas que estão passando. Foi assim com a LOA (Lei Orçamentária Anual) de 2021 e tem sido assim em outros temas, como as licenças ambientais, e agora a privatização da Eletrobras. Ameaça ser, mais tarde, com pautas como o “homeschooling”.

No caso do Orçamento, as tramoias resultaram numa peça impossível de ser executada, com o agravante de embutir movimentações de recursos propositalmente camufladas, para escapar dos órgãos de controle. Nas licenças ambientais, deu-se a aprovação a toque de caixa de regras que eliminam, dificultam ou impedem a fiscalização.

Agora na privatização da Eletrobras, o que já começou torto –o encaminhamento da matéria pelo governo sob a forma de uma medida provisória– entortou ainda mais na Câmara. Como observou o ex-diretor da Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica) Edvaldo Santana, a MP configura um “caso raro de jabutis que já nasceram nos galhos”.

A árvore que já chegou na Câmara com jabutis em seus galhos deu mais quelôneos na rápida tramitação na Câmara, sem audiências públicas em que especialistas e consumidores pudessem ser ouvidos. No final, eram tantos jabutis que, no próprio governo, considerou-se que inviabilizavam a privatização.

Mas, no que sobrou depois de alguns ajustes, a privatização da Eletrobrás fará com que os problemas gerados sejam tão grandes ou até maiores do que aqueles que privatistas costumam acusar estatais de provocarem. Inclusive uma incompreensível e pouco transparente determinação de instalar termelétricas a gás em locais onde ainda não existe fornecimento de gás.

Esses são todos exemplos de retrocessos produzidos pela aliança governo Bolsonaro-Centrão. Mas, infelizmente, ameaçam não serem os únicos. Também neste momento, avança na Câmara um projeto de liberação do homeschooling, o ensino formal fora da escola.

No padrão rolo compressor, sob o nevoeiro levantado pela CPI da Covid, o projeto, com parecer aprovado, encontra-se na Comissão de Constituição e Justiça, em regime de urgência. Quando votado, irá direto ao plenário, sem passar pela Comissão de Educação.

Sob o pretexto de liberar aos pais –aqueles que, na visão dos defensores do homeschooling, têm o “direito natural” à educação dos filhos– para transmitir o ensino formal aos filhos fora da escola, a educação domiciliar formal tem por trás a ideia de impedir que crianças sofram as “más influências” de escolas e professores.

A escola, de fato, é um lugar de aprendizado para as crianças. Mas não apenas das matérias tradicionais. É também o lugar do aprendizado da cidadania, da vida em sociedade, da convivência com os outros e, inclusive, com os diferentes.

Tudo considerado, escola não é só um lugar em que se deve aprender a ser tolerante. É, modernamente, aquela instituição que define a infância. Criança que não está na escola não é criança –é apenas um ser humano com pouca idade.

A falta de compreensão dos valores fundamentais da vida em sociedade é regra no governo Bolsonaro. É nessa incompreensão que se encaixa a obsessão do ministro da Economia, Paulo Guedes, pelos “vouchers” em substituição à oferta de serviços públicos de saúde e educação –obrigações constitucionais consignadas na Carta de 1988, em vigor.

Como nos outros exemplos mencionados, os vouchers, além de desidratarem noções e funções do Estado, são ineficientes e, no fim de tudo, em lugar da almejada redução, culminam acarretando aumento dos gastos públicos.

A ideia nasceu nos anos 50, foi formulada por economistas ultra-liberais, mas as experiências, ao longo do tempo, revelaram-se malsucedidas. A entrega de vales com determinado valor para que as pessoas paguem pelos serviços em estabelecimentos de livre escolha resultou em atendimento de baixa qualidade e em custos excessivos.

É fácil entender por que vouchers produzem essas ineficiências. Na saúde, planos de saúde comprados com vouchers seriam incapazes de oferecer serviços além dos muito básicos. Fora desses planos, o uso direto dos “vales” impediria na prática sua aplicação em atenção básica de saúde e em procedimentos preventivos, poupadores de recursos.

Na educação, a competição entre escolas pelos vouchers seria predatória, resultando em discriminação e desigualdades. Se bem controlado e fiscalizado, o sistema serve quando muito para expandir a oferta em sociedades pobres, sem condições de investir na estruturação de uma rede adequada de escolas. Escolas “charters”, existentes em alguns estados nos Estados Unidos, funcionam com vouchers, mas o resultado que oferecem, segundo diversos levantamentos, não é nem de longe dos melhores.

No geral, para se tornarem atraentes aos pais, a escolas tendem a eliminar os alunos tidos como piores ou difíceis, que lhes tirariam pontos nos rankings com os quais se apresentam aos “consumidores”, ou seja, os detentores dos vouchers. Escolas ruins recebendo dinheiro público é uma evidente ineficiência.

Sistemas de vouchers, no fim das contas, restaram aplicados em poucos países pobres, sobretudo na África, nos quais não há sistemas de saúde e educação suficientemente organizados. Trata-se de uma ideia antiga e em franco desuso. Os vouchers, sonho de Guedes, dificilmente teriam sucesso se implantados no Brasil e configurariam, tanto quanto outros projetos bolsonaristas, retrocesso desastroso.

Nos Estados Unidos, uma imagem recorrente, nos primeiros meses do governo de Joe Biden, foi a do novo presidente, sentado na escrivaninha do Salão Oval, abrindo cadernos de capa preta dura e assinando decretos. Todos desfazendo medidas adotadas no mandato de Donald Trump. É torcer para que o Brasil seja os EUA amanhã.

 

 

 

 

Por José Paulo Kupfer, 73 anos, é jornalista profissional há 51 anos. Escreve colunas de análise da economia desde 1999 e já foi colunista da Gazeta Mercantil, Estado de S. Paulo e O Globo. Idealizador do Caderno de Economia do Estadão, lançado em 1989, foi eleito em 2015 “Jornalista Econômico do Ano”, em premiação do Conselho Regional de Economia/SP e Ordem dos Economistas do Brasil. Também é um dos dez “Mais Admirados Jornalistas de Economia”, nas votações promovidas pelo site J&Cia. É graduado em Economia pela Faculdade de Economia da USP.

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