Opinião – A caixa preta da CBF

17/06/2021 13:25

Confederação teve casos de corrupção
Gestão evita a busca pela eficiência
Escolha de dirigentes é ‘entre amigos’
Copa América vem no risco da 3ª onda

Rogério Caboclo, afastado da presidência da CBF depois de acusações de assédio moral e sexual

jornalista investigativo escocês Andrew Jennings, um dos mais profundos conhecedores do submundo do esporte, fez história como único repórter do mundo banido das entrevistas da Fifa à imprensa por sua coragem em denunciar a corrupção, a lavagem de dinheiro e outras fraudes –o que acontece fora das 4 linhas do futebol, bem como do esporte internacional. Entre outros livros, publicou Jogo Sujo –o Mundo Secreto da Fifa em 2011, onde desmascara Joseph Blatter por seus desmandos à frente da entidade.

Lendo-se Jennings, consegue-se entender melhor porque o mundo do futebol é um dos campos que se mostra mais resistente à implantação dos conceitos de boa governança corporativa, especialmente no plano da integridade, do compliance e da transparência. Seus múltiplos interesses, cifras milionárias e o poder gigantesco adquirido por dirigentes desafiam a hipotética intenção de estabelecimento de limites.

Como já se sabe, denunciou-se que a decisão que determinou a sede da Copa do Mundo de Futebol de 2022 no Qatar foi obtida mediante votos comprados a peso de ouro e o mesmo se deu em relação à definição dos jogos olímpicos de 2016 no Rio de Janeiro, fato pelo qual o ex-governador Sergio Cabral já foi inclusive processado criminalmente e condenado. Estes são apenas alguns poucos exemplos, infelizmente.

Grandes poderes trazem grandes responsabilidades, conforme o “teorema do homem aranha Peter Parker” e, pelo que se percebe, tem-se lidado mal e de forma extremamente opaca com os poderes recebidos no que diz respeito aos dirigentes do futebol brasileiro.

A principiologia de gestão da Confederação Brasileira de Futebol não procura, na prática, de forma comprometida e intransigente, a eficiência. Não há perseguição implacável aos objetivos obstinados da integridade e da transparência. Professores renomados são convidados a escrever propostas de novos regramentos de compliance para a entidade, que jamais são adotadas ou implementadas na prática.

O compromisso profundo com a transparência, muito embora seja o Brasil um dos fundadores do pacto dos governos abertos estabelecido em 2011, quando assumiu perante o mundo o compromisso de se tornar referência mundial neste quesito, ao lado de Estados Unidos, Noruega, África do Sul e outros países, simplesmente parece não existir naquele universo futebolístico.

Aliás, a CBF tem-se notabilizado como exemplo notável de organização opaca, secreta, da qual pouco se sabe, alheia ao dever de prestar contas, como se não lhe dissesse respeito a ideia da accountability, não obstante lidar com objeto que faz parte do patrimônio cultural do Brasil.

Eis que, depois do banimento de Ricardo Teixeira e Marco Polo Del Nero do mundo do futebol, e da prisão do octogenário José Maria Marin, por corrupção, lavagem de dinheiro e outras fraudes, uma funcionária da CBF acaba de vir a público com provas gravadas para corajosamente denunciar o presidente Rogério Caboclo por abuso de poder –atos de assédio moral e sexual.

Foi obviamente positivo o fato de ter sido afastado o dirigente pelo comitê de ética da entidade, ainda que pelo breve período inicial de trinta dias, pois representa sopro de conformidade em ambiente opaco, palco de negociatas que levaram sucessivos cartolas ao cadafalso.

No entanto, quem substitui o afastado é o vice-presidente Coronel Nunes, mais antigo da entidade, o que está longe de ser um bom encaminhamento em matéria de boa governança e eficiência. Não há democracia na escolha destes dirigentes, uma grande ação entre amigos, verdadeiro jogo de interesses com cartas mais que marcadas.

Nestas sombras horripilantes, em plena pandemia, em relação à qual o Brasil ocupa a trágica posição de epicentro mundial, com pequeno percentual da população já vacinada, com uma CPI em marcha no Senado trazendo a público todos os dias duras revelações, marchamos em direção ao marco das 500 mil vidas perdidas. Depois que Argentina e Colômbia acertadamente se recusaram a sediar a Copa América por motivos sanitários, após aceno da Conmebol, eis que o presidente da CBF se acerta com o presidente da República no sentido de que a competição será realizada no Brasil em 4 cidades cujos governantes são aliados políticos de Bolsonaro.

Infelizmente, nossos números da pandemia são macabros e assombram o planeta e em especial a nós. Por mais que haja protocolos sanitários, as pessoas se aglomeram no Brasil do lado de fora dos estádios, em aeroportos e onde quer que possam se aproximar de seus ídolos e este risco poderia e deveria ser evitado, se o bom senso, o respeito à ciência e o cuidado com as pessoas fossem as referências fundamentais para a tomada de decisão. A prioridade política única, total e absoluta deveria ser proteger e vacinar todos de imediato.

O ideal seria mesmo interromper todas as competições, por coerência. Mas, partindo da premissa que não se faça isto, para que neste momento da chegada da 3ª onda –talvez a mais letal– aumentar nossos riscos e nossos problemas inerentes à pandemia, chamando para nós a Copa América?

Lamentavelmente esta decisão nos traz à lembrança, com tristeza inevitável, o quanto o poder já se serviu do efeito anestésico do futebol no Brasil, ao longo de nossa história, em todos os momentos. Para divertir e acalmar nosso sofrido povo e ao mesmo tempo tão pouco instruído e tão manipulável pelos detentores do poder.

 

 

 

 

Por Roberto Livianu, 52, é procurador de Justiça, atuando na área criminal, e doutor em direito pela USP. Idealizou e preside o Instituto Não Aceito Corrupção. Integra a bancada do Linha Direta com a Justiça, da Rádio Bandeirantes, é articulista da Folha de S. Paulo e do Estado de S.Paulo e é colunista da Rádio Justiça, do STF.

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