14/09/2021 11:43
”Será que a democracia que defendem é a liberal de matriz inglesa (…) ou será que defendem a democracia segundo a tradição continental(…) ?”
Nos últimos meses, o tom da conversa subiu entre os chefes dos poderes e os diversos grupos de apoio das bases dos movimentos políticos existentes no país. Da esquerda à direita, todos têm organizado sua militância, reforçado o marketing, mobilizado imprensa e classe artística, além de convocar manifestações regulamente.
Dentre diversas reivindicações e enfretamentos, o que mais chama a atenção do público é acusação mútua de que a democracia é ou foi ameaçada pelas atividades políticas e de governo, encabeçadas por representantes de ambos os espectros ideológicos.
Como movimentos com orientação política e ideológica tão diferentes, podem se acusar de fazer exatamente o mesmo, isto é, tentar subjugar a democracia brasileira? Se ambos lutam pelo mesmo objetivo e procuram defender um mesmo valor democrático, por que há tanto enfrentamento e tão pouca unidade de propósitos? Será uma diferença apenas em relação aos meios e não quanto aos fins?
Infelizmente não. A verdade é que apesar de utilizarem a mesma palavra, qual seja, “democracia”, os movimentos políticos de matriz marxista e os de matriz liberal clássica referem-se a objetos diametralmente opostos quando utilizam o termo e, por isso, há tanta divergência quando ao assunto é defendê-la.
Para compreender como o conceito de democracia é utilizado por ambos os grupos, é preciso entender que ambos possuem raízes em tradições distintas. O primeiro, que é adotado pela maior parte dos liberais e conservadores, surgiu na Inglaterra, no tempo dos Old Whigs de meados ao final do século XVII e foi impulsionado pelo trabalho de homens como Edmund Burke, John Locke e Adam Smith. O segundo conceito de democracia por sua vez, foi criado na Europa continental por meio do trabalho de importantes filósofos como Voltaire e Rousseau.
Na tradição democrática liberal inglesa, a “propriedade privada” tem um papel central e quase sagrado, pois suas raízes estão na própria natureza humana, isto significa dizer que, de acordo com esse entendimento, a propriedade privada e a liberdade individual são superiores a qualquer forma de planejamento político, pois a legitimidade das instituições estaria assentada em uma ordem social espontânea, único meio pelo qual é possível a utilização do conhecimento e habilidades humanas em larga escala, de forma coordenada, livre e eficiente.
Por outro lado, na tradição democrática continental, cuja influência se faz presente na moderna concepção de democracia ligada à esquerda política, há a intenção de subordinar a sociedade a um conjunto de objetivos políticos/normativos comuns. Nessas condições, os indivíduos não seriam mais livres para fazer o que quiserem e certamente não seriam livres para utilizar sua propriedade da maneira que considerarem adequada.
Essa concepção de democracia, foi posteriormente batizada de democratismo, e se encontra presente no discurso da esquerda política, principalmente, quando esta defende a regulação dos meios de comunicação, controle político das instituições, políticas de distribuição de renda e a criação de um currículo educacional comum.
No mesmo sentido, setores mais ligados ao militarismo e ao espectro político de centro também se valem desse conceito de democracia quando defendem a centralização política, a supremacia do interesse nacional e a assimilação dos diversos povos e culturas em benefício de um tipo brasileiros ideal.
Quando grupos políticos se acusam de atacar a democracia, é preciso que nos perguntemos primeiro a que tipo de democracia eles se referem. Será que a democracia que defendem é a liberal de matriz inglesa, onde há a uma intransigente defesa da propriedade privada e a primazia da liberdade individual, ou será que defendem a democracia segundo a tradição continental, que busca uniformizar a sociedade por meio de valores comuns, politicamente definidos e que se sobrepõe ao direito de propriedade e à liberdade individual?
Por Allan Augusto Gallo Antonio, formado em Direito e Mestre em Economia e Mercados, é analista do Centro Mackenzie de Liberdade Econômica.