Opinião – Setor elétrico: desafios para emissões zero de carbono

21/10/2021 07:06

”…temos desafios de convencimento de incrédulos, de desenvolvimento tecnológico e de disponibilidade de suprimento de alguns minerais”, lamenta o autor

O Relatório do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas das Nações Unidas, recentemente publicado, traz alertas impressionantes. O relatório afirma que as consequentes mudanças na temperatura e nos extremos climáticos afetam todas as regiões do mundo e serão irreversíveis daqui para adiante. Que nos oceanos, a frequência de ondas de calor, a acidificação e a baixa dos níveis de oxigênio afetarão os ecossistemas dos mares e pessoas que dependem deles. Que nas cidades, fenômenos como calor e inundações fortes podem piorar com a maior precipitação em todas as regiões e haverá mais ondas de calor, maior duração de estações quentes e menos frio. Que as secas serão mais intensas e que se agravarão as enchentes em regiões baixas. Eventos extremos antes registrados a cada 100 anos poderão ocorrer a cada ano.

A seca que vivenciamos este ano no Brasil pode ser um reflexo desses acontecimentos.

O relatório da ONU confirma que essas alterações são causadas pelas emissões de gases de efeito estufa.

A maior fonte de emissão desses gases causadores do aquecimento global vem da queima de combustíveis fósseis, sendo transporte e geração de eletricidade as principais fontes.

No setor de mobilidade temos aspectos bem distintos entre a mobilidade urbana e a de longa distância. Na mobilidade urbana, o transporte coletivo pode ser eletrificado por sistemas de metrô, ônibus elétricos, transporte individual por carro elétrico e transporte leve de cargas por caminhões leves também elétricos. Isto já é possível e econômico. Vários países e fabricantes de veículos já definiram datas limites para fim da fabricação e venda de veículos de combustão interna.

Para os carros elétricos tem havido grande desenvolvimento dos fabricantes destinados a reduzir os custos do investimento inicial e para baterias com maior autonomia (alguns chegando a mais de 500 km entre cargas). Mas o carregamento ainda é um desafio a ser vencido. Ter um carro, mas necessitar horas para carregar a bateria, ainda traz grande desconforto. Realmente existem baterias e carregadores especiais que em menos de uma hora podem recarregar até 80% da caga da bateria. Mas essa solução para viagens fora do âmbito urbano traz necessidade de investimentos em redes desses carregadores e ainda não se apresenta confiável para o consumidor.

Na mobilidade de longa distância o problema tem se apresentado com maior dificuldade. Que combustível usar nos diferentes tipos de veículos: barcos, navios, aviões, caminhões e ônibus de longa distância? Várias soluções são possíveis, e vários atores estão trabalhando nisso. mas ainda não existe uma solução clara e insofismável de consenso para a melhor para cada tipo de veículo.

A geração de eletricidade que resulte em ZERO de emissão de dióxido de carbono (CO2) e outros poluentes exigirá o uso de fontes primárias de energia que não envolvam combustíveis fósseis (carvão, petróleo e gás natural) exceto se acompanhados de sistema de Captura, Utilização e Armazenamento de Carbono (CUAC).

Nenhuma fonte de energia será capaz de isoladamente permitir a redução de emissões para zero.

Porem eletricidade deverá ser o fator mais importante para expansão da energia de fontes limpas, servindo de combustível alternativo para uso por atividades que atualmente usam combustíveis fosseis. Assim em relatório recente a Agencia Internacional de Energia (AIE) estima que em 2070 a geração de eletricidade será três vezes a de hoje com necessidade de adição de geração equivalente a capacidade hoje instalada na China a cada oito anos.

O perfil da geração elétrica deverá ser por fontes renováveis (hidro, eólica, solar) mais nuclear e uso de CUAC nas térmicas hoje existentes e a serem instaladas no futuro próximo. Para o cenário mais acelerado de 2050, o relatório prevê necessidade de aceleração atingindo em 2050 necessidade de ter-se duas vezes e meia a capacidade de geração de eletricidade hoje existente, o que equivale a instalar a cada três anos a geração total hoje existente nos EUA.

Atualmente Energia Elétrica representa ao redor de 20% do consumo mundial de energia. Para atender aos compromissos de redução de emissões estabelecido no Acordo de Paris, essa participação estará dobrando e a AIE estima que o crescimento do uso de eletricidade na mobilidade das pessoas e mercadorias (por automóveis, ônibus e caminhões); o aumento do uso em industrias; e o aumento do uso em edificações (para condicionamento de ar, cozinha e aparelhos domésticos); fará com a demanda de eletricidade mais do que dobre até 2050.

A pesquisa de novos materiais tornou muito mais baixo os custos de produção de painéis solares fotovoltaicos com redução de 82% entre 2010 e 2019 fazendo com que o custo da energia gerada nesse tipo de usina seja competitivo com energia gerada em usina térmica convencional.  O mesmo desenvolvimento tecnológico barateou o custo das centrais eólicas em 39% entre 2010 e 2019. Assim a nível global as fontes renováveis, especialmente solar e eólica, representam a solução mais apropriada para alcançar os objetivos de redução de emissões de carbono.

Para essa descarbonização, o setor elétrico terá que implantar massivos investimentos em geração solar fotovoltaica e eólica, que deverão juntas crescer 20 vezes entre 2020 e 2050. Geração hidrelétrica e de biomassa deverão crescer 2.5 vezes e nuclear dobrada nesse mesmo período.

Pelo Acordo de Paris os países se comprometeram a reduzir suas emissões desses gases com o objetivo de alcançar emissão ZERO na metade deste século. Entretanto esse objetivo tem encontrado grandes dificuldades.

A primeira dificuldade tem sido dos negacionistas. Igualmente com o que tem ocorrido com o COVID, existe uma parcela da população, inclusive alguns com formação acadêmica, que contestam a ciência e os resultados que não condizem com suas teorias conspiratórias. Isto gera oposição política.

A segunda dificuldade vem dos interessados comercialmente na produção e venda de combustíveis fosseis. Fortíssimo lobby. Pessoas e empresas de forte poder econômico. Embora, nos últimos meses, alguns desses interessados passaram a se interessar também por fontes renováveis de energia. Por esses motivos, ou por outros que não podemos identificar, verifica-se que as emissões de CO2 provenientes de geração de eletricidade que haviam caído em 1% em 2019 e 3.5% em 2020 aumentaram em 2021 com a maior participação de geração com base em combustíveis fosseis, que voltou a aumentar, resultando em aumento esperado de 3.5% em 2021 e 2.5% em 2022.

A terceira dificuldade vem da experiencia do aumento de participação significativa de fontes intermitentes (solar e eólica) no mix de geração. A experiencia dos países como Dinamarca, Espanha, Alemanha e os estados americanos de California e Texas que desenvolveram fortemente esses tipos de fontes intermitentes, indica que cada vez mais a confiabilidade e a flexibilidade operativa tornam-se imprescindíveis para evitar o desastre de blecautes. Com isso o mix de geração não pode ser 100% de eólicas e fotovoltaicas exigindo a participação de maquinas com inercia girante.

Finalmente a última dificuldade vem do desafio do uso de materiais para a nova situação energética como na manufatura de carros elétricos e de fontes fotovoltaicas e eólicas.

Relatório recente da AIE (The Role of Critical World Energy Outlook Special Report Minerals in Clean Energy Transitions – May 2021) apresenta uma fotografia com os desafios para essa transição. Vejamos um resumo dos pontos levantados nesse relatório:

  • Um Sistema baseado em tecnologia de energia sem carbono se diferencia muito do que estamos acostumados no sistema baseado em combustíveis fosseis, quanto a necessidade de minerais para seus componentes. Usinas fotovoltaicas e eólicas e carros elétricos geralmente requerem para suas manufaturas maior quantidade de minerais do que suas contrapartes usando combustível fóssil.
  • Um carro elétrico típico requer seis vezes mais minerais do que um carro de combustão interna e uma usina eólica terrestre requer nove vezes mais minerais do que uma térmica a gás de mesmo porte. Desde 2010 o montante médio de minerais requerido para novas unidades de geração de eletricidade aumentou em 50% devido ao aumento de investimento em renováveis intermitentes.
  • Os tipos de minerais requeridos variam de acordo com a tecnologia usada. Lítio, Níquel, Cobalto, Manganês e Grafite são cruciais para performance, longevidade e densidade de carga das baterias. Elementos minerais de terras raras são essenciais para imãs permanentes vitais para eólicas e motores de carros elétricos. A mudança para energia sem carbono resultará em crescimento vertiginoso na necessidade desses minerais.
  • Hoje o setor elétrico possui uma vulnerabilidade relativa ao suprimento de petróleo, porém, com a mudança para esse novo paradigma a vulnerabilidade poderá passar para a disponibilidade e preço desses minerais.
  • A AIE estima que para atender o objetivo de emissões zero em 2050 a quantidade de instalações de geração de eletricidade baseada em eólica e fotovoltaica e a transformação da frota de veículos novos para carros elétricos exigiria em 2040 que o consumo desses minerais já seja seis vezes o consumo atual. A demanda para carros elétricos e baterias sendo o principal componente desse consumo.
  • Na geração de eletricidade o carro chefe do consumo desses minerais é a geração eólica, ficando fotovoltaica em segundo lugar bem próxima. Hidroelétricas, biomassa e nuclear teriam participação de pequeno porte. E hidrogênio aumentaria a demanda por níquel e zircônio para eletrolisadores e matais de platina para células de energia.
  • Esse rápido aumento na demanda desses minerais críticos – em vários casos nunca antes observados – traz duvidas sobre a disponibilidade e confiabilidade do seu suprimento. No passado, dificuldades de suprimento se resolveram com novos investimentos e medidas para adequar a demanda. Porem, essas respostas tomam tempo e são acompanhadas por volatilidade de suprimento e de preço.
  • A disponibilidade e preço desses minerais é crucial para o custo das baterias, em especial lítio e níquel. O custo de materiais hoje representa 50-70% do custo da bateria comparado com 40-50% há cinco anos. Analise da AIE estima que as minas atualmente existentes e projetos futuros confirmados, teriam capacidade de atender metade da demanda de lítio e cobalto para o ano de 2030. Isso mostra a vulnerabilidade do suprimento e o risco de preço.
  • O suprimento desses minerais enfrenta as seguintes dificuldades: (a) enorme concentração da produção mundial; (b) tempos longos entre descoberta de novas minas e exploração comercial, chegando a mais de 16 anos; (c) possibilidade de queda da qualidade pelo aumento da quantidade; (d) risco de mal gerenciamento ambiental e social das minas gerando desqualificação dos fornecedores; e (e) riscos climáticos nas regiões das minas.
  • A atual concentração de produção pode ser vista pelo resultado do ano de 2019 quando a Republica Democrática do Congo e a China foram responsáveis por 70% da produção de cobalto e 60% de elementos de terras raras. A concentração ainda maior no processamento desses minerais tendo na China concentração de 35% do Níquel, até 70% do Cobalto, e 90% de elementos de terras raras.
  • O uso de reciclagem diminui a pressão do suprimento de materiais primários. Para materiais já muito utilizados (aço por exemplo) as práticas de reciclagem já são costumeiras. Mas para esses materiais da transição para a nova economia de carbono zero (como lítio e terras raras) devem ser criadas praticas semelhantes principalmente para reciclagem de baterias e turbinas eólicas.

Portanto o mundo enfrenta necessidades urgentes de colaboração entre os diversos países. Somos um único planeta que todos habitamos. A ciência demostrou que a atuação humana está provocando danos irreparáveis ao ambiente que podem colocar em risco a sobrevivência da raça humana. Temos a possibilidade de frear esse processo e diminuir os danos. Porem de nada adianta um país fazer sua parte se outros (ou mesmo uns poucos) não fizerem. Mesmo assim ainda temos desafios de convencimento de incrédulos, de desenvolvimento tecnológico e de disponibilidade de suprimento de alguns minerais.

 

 

 

 

Por Armando Ribeiro de Araujo é carioca, Engenheiro Eletricista formado pela UFRJ com Mestrado pelo Illinois Institute of Technology e Doutorado pela Universidade Federal de Itajubá.  Tem 55 anos de experiência profissional com atuação no Brasil e em vários países.  Atualmente é Consultor Individual com contrato com o Banco Mundial e outras entidades.

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