28/10/2021 06:51
”Estamos numa subida galopante dos combustíveis. Um problema mundial e europeu, com impactos ainda imprevisíveis mas bem temerosos”
1. Não me faz mossa que o orçamento passe ou não passe, por uma razão simples. A sua “bondade”. O orçamento, por muitas loas que se lhe teça, não passa de um documento formal para formatar a gestão dos dinheiros públicos do país e para cativações da melhor forma, aquele instrumento por vezes usado para nos contemplar com uma réstia de sol, incluída, para dar a tónica do social e que se dilui na cativação.
Mas são este e todos, os passados e os futuros e de todos os governos. Eventualmente, os de alguns governos à direita nem essa réstia de sol contemplam.
Estou apenas a aguardar o desfecho. No momento em que escrevo anda tudo um pouco confuso, embora com detalhes diferentes e mais negros das situações de antes. No momento em que sair o escrito, na véspera da votação, tudo deverá estar transparente.
2. Admito que até veria com bons olhos a hipótese do chumbo. Um abanão e uma desmistificação da posição de Marcelo Rebelo de Sousa e de outros políticos por andarem a falar dos riscos da democracia e de atrasos na implementação do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR).
Até parece que Portugal é caso único. Que em outros países não há crises políticas. Que tem de haver sempre governos “certinhos”! Quantos países europeus já estiveram a funcionar sem governo, um ano ou mais, ou com governos a caírem várias vezes em prazos curtos? Basta lembrar a Bélgica, a Itália e quantas vezes em situações aparentemente adversas, a funcionar melhor do que com governo de facto ou até bem melhor do que outros formalmente “certinhos”.
Esta situação é cansativa por demais. Todos os anos este jogo do gato e do rato menos criativo que o jogo original. Pois, é só jogo. Nada de fundo se trata.
3. Que estratégia está por trás deste orçamento? De estratégia, certamente nem se falou.
Um exemplo. Estamos numa subida galopante dos combustíveis. Um problema mundial e europeu, com impactos ainda imprevisíveis mas bem temerosos. Ouvi, nestes dias, a União Europeia sacudir a água do capote. Ficou cada país a fazer o que entender e puder.
A França – segundo o discurso do ministro das Finanças a 30 de Setembro de 2021, Paris, no Conselho Nacional do Hidrogénio – colocou-se à frente na defesa da energia nuclear e exigiu “a reforma do mercado europeu da energia”, afirmando taxativamente: “este mercado é uma aberração. Não há razão nenhuma para que a França pague o custo marginal de funcionamento das produções de gás que se fazem na Alemanha e noutros países. Ora, é o caso. Nós alinhamos o preço da electricidade pelo custo marginal das centrais a gás”, e acrescenta que é necessária uma mudança em profundidade deste mercado.
Mais. Diz já ter escrito ao presidente do Eurogrupo para que o problema seja debatido, repensado e alterado. Mais, afirmou que a França traçou uma estratégia para ser número um mundial na fileira do Hidrogénio Verde, apontando as razões que tem para atingir esse objectivo: uma fileira nacional integrada em construção.
Não ouvi falar deste tema nas grandes discussões que, presumo, “profundas” sobre o orçamento, apesar de ser um tema crucial que pode pôr em causa todas as projecções simpáticas de crescimento da economia para 2022. Será que não tem interesse discutir quando está em causa a retoma da economia nacional?
Outro tema, o Serviço Nacional de Saúde (SNS).
Li alguns artigos de especialistas na economia da saúde. Por exemplo, um de Pedro Pita Barros, intitulado “Saúde: um orçamento generoso que tem de ser bem usado”. O autor aceita o acréscimo de cerca de 800 milhões de euros como bom em abstracto. Falta saber-se a forma de aplicação porque não vem definida. “Ler mais despesa do SNS como sinónimo de melhoria não é imediato. Se a verba for toda gasta em aumentos salariais ou pagamento de serviços a preços mais elevados, nada muda para o cidadão, mesmo que se gaste mais”.
Não dei conta que esta parte importante da aplicação dos 800 milhões da saúde tenha sido alvo de discussão nas negociações. Ouvi falar do SNS sob muitos ângulos, mas uma discussão objectiva não ouvi. Terei andado distraído.
Vi muita discussão sobre dinheiros e pouco de economia.
Enfim, os exemplos poder-se-iam ir multiplicando.
Não entendo, por outro lado, porque se chora sobre leite derramado. Toda a gente está contra uma economia de baixos salários e depois vêem-se os representantes das confederações patronais e de alguns partidos à direita a condenar o aumento do salário mínimo em 40 euros, alegando que a economia não os pode sustentar, com o velho e gasto argumento que muitas empresas vão falir. Alguém entende? E acrescentam que só com contrapartidas do Governo pode haver aumento do salário mínimo.
4. Depois da actuação decisiva do Estado na gestão da Covid-19, em que ficou demonstrada a sua grande eficácia e que sem essa intervenção e a dedicação da maioria dos profissionais de saúde teria havido um grande descalabro, chegou o tempo de se definir bem e a fundo qual o papel do Estado na gestão do País e agir neste contexto.
O País precisa de um plano com pés e cabeça e muito diálogo com os sectores e parceiros. Uma estratégia e um plano de longo prazo, com o qual os orçamentos se articulem.
Em conclusão. O modelo de orçamento usado não serve – há falta de bases económicas estratégicas. O que é feito pouco passa de um pró-forma. Objectivos, caminhos e aonde chegar precisam-se.
O orçamento deveria ser precedido de um documento de balanço com as falhas de execução, com as eventuais limitações da sua concepção e recomendações.
A partir desse documento e na base de uma estratégia explícita, avançar então para um orçamento encadeado nas linhas futuras da realização da estratégia de desenvolvimento.
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.
Por João Abel de Freitas, é economista, natural de Madeira, foi Diretor do Gabinete de Estudos e Prospetiva (1998-2003) do Ministério da Economia