Opinião – Por que a China nunca será uma democracia

18/11/2021 10:01

”não é uma ideia que faz sentido para a atual direção da China, ou para qualquer outro governo que os chineses já tiveram”

Conceito de democracia, como a do Brasil, não faz o menor sentido para os chineses.| Foto: Alan Santos/PR

A China é muito longe do Brasil, muito diferente em tudo, muito mais rica — segundo o FMI, teve em 2020 um PIB dez vezes maior que o brasileiro — e é muito mais importante para o resto do mundo. Ou seja: não dá para comparar. Não dá, mas também não é proibido olhar para a China e pensar um pouco no que acontece lá. Não para copiar nada, pelo amor de Deus — é só mesmo para pensar.

Há quase dez anos, desde 2012, a China vem sendo comandada por um só presidente e um só governo, e acaba de decidir que vai continuar assim pelo futuro próximo. Obviamente, o esquema tem dado certo; a China, sob a atual direção, continua sendo de longe o país de maior sucesso material do mundo, com todos os espetaculares benefícios que isso tem trazido para a sua sociedade. Se não estivesse dando certo, aliás, a coisa não continuaria de pé.

Num mundo que vive na incerteza, na inconstância e na incapacidade de definir o que quer, com uma inflação descontrolada de “causas” de todos os tipos, a China é uma rocha de estabilidade. Tem problemas, é claro; teve Covid, como todo mundo — foi a pátria da Covid, aliás — tem disputas, tem dificuldades sérias, tem escassez de terra e de água, tem gente infeliz. Mas não vacila, nunca, no essencial: fazer tudo o que é necessário para manter vivo, e muito acima de qualquer outro país, o crescimento econômico.

Os chineses já há muito tempo — na verdade, desde que começaram a sua extraordinária transformação interna, possivelmente a maior que uma nação já viveu na história humana — têm uma certeza: a única solução efetiva para as questões sociais está no crescimento contínuo, racional e acelerado da economia. Isso deve ser feito com as ferramentas do capitalismo e com a liberação das forças produtivas — e sob o comando de um partido político único que, na verdade, é um sistema burocrático e administrativo baseado no mérito individual. Fim de conversa.

A China não precisou de democracia para sair do subdesenvolvimento mais aterrorizante em que estava 50 anos atrás e passar para a posição de segunda maior economia do mundo. Não precisou de democracia, igualmente, para satisfazer com toda a decência as necessidades materiais de uma população a caminho do 1 bilhão e meio de habitantes. Na verdade, em 5 mil anos de história, nunca teve democracia — e não parece nem um pouco interessada em ter uma agora, ou em futuro visível.

Na China não há debates sobre a “linguagem neutra”, as terras indígenas ou o direito de homens biológicos jogarem em equipes esportivas de mulheres. Não existe a Ordem de Advogados da China, nem um supremo tribunal federal que manda para a cadeia aliados do presidente Xi Jiping. Nas escolas, os professores têm de ensinar de verdade os alunos, a começar pelas ciências exatas — ou é isso, ou vão para a cadeia. Não há um Ministério Público que proíbe o governo de construir estradas de ferro ou usinas de energia elétrica. Não há uma porção de outras coisas.

O contrato social na China é outro. O governo não fornece Constituição, com 250 artigos, estabelecendo o “direito de moradia” — fornece a moradia. A troca é simples. Nós damos comida, trabalho, tratamento médico, escola, celular, laptop e mais uma porção de coisas reais. Vocês deixam o governo em paz. Tudo bem?

É assim que funciona lá. A democracia do mundo ocidental cristão — tecnicamente, a mesma no Brasil e na Suécia, com resultados opostos num lugar e no outro — não é uma ideia que faz sentido para a atual direção da China, ou para qualquer outro governo que os chineses já tiveram. Eles mesmos, pelo que se vê na prática, acham que está bom assim. Vida que segue, portanto.

 

 

 

 

Por J.R.Guzzo é jornalista. Começou sua carreira como repórter em 1961, na Última Hora de São Paulo, passou cinco anos depois para o Jornal da Tarde e foi um dos integrantes da equipe fundadora da revista Veja, em 1968. Foi correspondente em Paris e Nova York, cobriu a guerra do Vietnã e esteve na visita pioneira do presidente Richard Nixon à China, em 1972. Foi diretor de redação de Veja durante quinze anos, a partir de 1976, período em que a circulação da revista passou de 175.000 exemplares semanais para mais de 900.000. Nos últimos anos trabalhou como colunista em Veja e Exame.

Tags: