18/11/2021 11:15
”Assim, este povo não mais será vassalo de ninguém”
Em 31 de maio de 2017, sob muita pressão, num tempo em que os grandes veículos de comunicação ainda cumpriam algum papel frente aos problemas nacionais, o Senado Federal aprovou, em 2º turno, a PEC 10/2013 que extinguia o foro especial por prerrogativa de função, mais conhecido no mundo do crime pela alcunha de foro privilegiado. Placar da votação 69 a zero. A proposta seguiu imediatamente para a Câmara dos Deputados, onde foi protocolada como PEC 133/17.
Desde então, muito provavelmente cumprindo acordo anterior, a proposta rolou como pedra de rio. Em fevereiro de 2019, redonda e polida como convém a uma boa pedra de rio, encalhou em remanso à porta do brioso plenário, aguardando a sábia deliberação dos 513 deputados ali aportados com seus novos e flamantes diplomas. Já recebeu mais de 30 requerimentos para ser posta em votação, sempre recusados pelos sucessivos presidentes daquele legislativo. Puxe o banco, sente e espere.
Salvo poucas, honradas e brilhantes exceções, a atual representação parlamentar nacional conseguiu a proeza de definhar moralmente em relação à anterior. Em votações sinuosas, anônimas, foi minuciosa no desempenho da tradicional função de cuidar bem de si mesma. Vingou-se da Lava Jato, restringiu quanto pôde a persecução criminal, aliviou eventuais próprias e futuras penas, transferiu à sociedade a conta de seus advogados. E por aí andaram. A tranqueira da PEC sobre foro privilegiado é só um pequeno exemplo.
Lá pelas tantas, Madison escreve que a adoção de medidas opressivas pela Câmara dos Representantes também é tolhida porque “seus membros não podem fazer nenhuma lei que não tenha seu pleno efeito sobre eles mesmos e seus amigos, tanto quanto sobre a grande maioria da sociedade. Esse sempre foi considerado um dos mais fortes elos que permitem à política humana unir governantes e povo”. A seguir, Madison se pergunta: “O que poderá impedir os membros da Câmara de Representantes de fazer discriminações legais em favor de si mesmos e de uma classe da sociedade?”. E responde: “a índole de todo o sistema; a natureza das leis justas e constitucionais, e acima de tudo, o espírito vigilante e varonil que move o povo da América, um espírito que alimenta a liberdade e é, em troca, alimentado por ela”.
Peço a Deus que os leitores destas linhas, em vez de se deixarem abater pela realidade sobressaliente do contraste acima exposto, reconheçam seu próprio valor e enxotem os vendilhões do templo da democracia e da liberdade. E que o façam, com vigor cívico, para que os votos a serem dados em outubro do ano vindouro sejam apenas reflexos finais de uma longa ação esclarecedora sobre as verdades, princípios e valores fundantes de uma democracia que assegure nossa liberdade. Assim, este povo não mais será vassalo de ninguém.
Por Percival Puggina, membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+.