19/11/2021 12:37
”A sociedade brasileira não suporta mais a alocação ineficiente de recursos públicos”
Em 1.º de outubro, o ministro relator da Ação Direta de Inconstitucionalidade 6.678, ajuizada pelo Partido Socialista Brasileiro no Supremo Tribunal Federal, proferiu decisão que mitiga o regime sancionatório previsto na recém-alterada Lei de Improbidade Administrativa. O partido ajuizou a ação com o objetivo de ver excluída do artigo 12, incisos II e III, a sanção de suspensão dos direitos políticos, por entender desproporcional aos ilícitos de referência (artigos 10 e 11 da LIA). O ministro relator acolheu a pretensão para, em juízo de cognição sumária, “conferir interpretação conforme à Constituição ao inciso II do artigo 12 da Lei 8.429/1992, estabelecendo que a sanção de suspensão de direitos políticos não se aplica a atos de improbidade culposos que causem dano ao erário” e “suspender a vigência da expressão ‘suspensão dos direitos políticos de três a cinco anos’ do inciso III do art. 12 da Lei 8.429/1992”.
Com este artigo, nossa intenção é chamar a atenção para a organicidade do sistema judiciário brasileiro, particularmente no que diz respeito à interpretação e aplicação da Lei de Improbidade Administrativa.
A Constituição Federal atribui ao Superior Tribunal de Justiça competência para uniformizar a interpretação e aplicação da legislação federal, no âmbito da Justiça Comum. No exercício dessa atividade, o Superior Tribunal de Justiça busca afinar-se às decisões do Supremo Tribunal Federal sobre diferentes temas. Apesar disso, o regime de competências estatuído pela Constituição da República, anote-se, não é sem sentido. Trata-se, retorne-se a Kelsen, de uma fórmula de distribuição do poder político, mas também e sobretudo de um mecanismo de racionalização dos trabalhos. Distribuição de tarefas. A Constituição estabelece que compete ao Supremo Tribunal Federal a guarda da Constituição, atribuindo ao Superior Tribunal de Justiça a função de uniformização da interpretação e aplicação da legislação federal.
Desde a criação da Lei 8.429/92, a formidável e hoje retalhada/quase esvaziada Lei de Improbidade Administrativa, o Superior Tribunal de Justiça tem-se debruçado sobre centenas de milhares de processos sobre o tema. Centenas de milhares, quando não mais. Sabe-se que o STJ não se reconhece competente para revisar questões de fato – a conhecida Súmula 7 –, o que não impede que supere esse entendimento quando se trate de matéria de improbidade. Afinal, em matéria de improbidade, há muito casuísmo, cada caso é singularizado pelas circunstâncias de ocorrência do ilícito. Por esse motivo, é pacífica a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça no sentido de analisar cada caso no detalhe e relativizar as sanções impostas caso se afigurem desproporcionais e irrazoáveis, ainda que o pedido de revisão da sanção não tenha sido deduzido no apelo pela parte interessada.
Portanto, o problema da Lei de Improbidade Administrativa não está na medida sancionadora escolhida pelo legislador ordinário. Está, sim, eventualmente, na dosimetria imposta pela autoridade julgadora, como em qualquer outro tipo de processo, dosimetria essa que pode vir a ser corrigida pelas instâncias recursais de jurisdição, também como em qualquer outro tipo de processo.
A decisão proferida liminarmente pelo ministro relator na ADI 6.678 cita Robert Alexy para justificar a ideia ali apresentada de que “restrições a direitos fundamentais devem ser exceção, e não regra”. De fato, de acordo com Robert Alexy, e como mencionado na decisão liminar, restrições a direitos fundamentais devem atender ao critério da proporcionalidade, cujas submáximas servem para aferir a racionalidade argumentativa da autoridade decisória. Pois bem, a máxima da proporcionalidade é exigida não apenas do legislador, mas também do julgador, sobretudo quando a decisão judicial importa em revisão de decisões legislativas e impõe, afinal, restrições a direitos fundamentais. Em nosso entender, e já saltando para a última etapa do exame da proporcionalidade, a decisão monocrática na ADI não é razoável.
Na decisão liminar, justifica-se a ausência de proporcionalidade da opção legislativa – sanção de suspensão de direitos políticos nas hipóteses dos artigos 10 e 11 da LIA – sobre suposta desproporção comparativamente ao apenamento legal previsto para delitos de maior gravidade. Cite-se trecho elucidativo do entendimento esposado na decisão: “As penalidades de suspensão de direitos políticos objeto desta ação direta variam de 3 a 8 anos, a depender da conduta. Isso significa que esses atos de improbidade implicam a supressão temporária do direito de participação política em patamar superior, por exemplo, aos condenados pelos crimes de lesão corporal grave e gravíssima (Código Penal, artigo 129, §§ 1.º e 2.º)”.
Todavia, questiona-se o uso da sanção de outros delitos como parâmetro para metrificação das sanções por delitos de improbidade. O bem juridicamente tutelado nos crimes de lesão corporal e lesão corporal gravíssima, citados na decisão, são absolutamente relevantes, e quer nos parecer que uma proposta seria apená-los com sanções mais severas, e não, em um exercício comparativo, mitigar sanções de ilícitos outros dotados de alta carga de reprovabilidade objetiva.
O mesmo raciocínio foi utilizado na decisão para outros ilícitos: “é possível verificar que a suspensão de direitos políticos das condutas ímprobas em tela é superior aos crimes de peculato (Código Penal, artigo 312), concussão (Código Penal, artigo 316) e corrupção passiva (Código Penal, artigo 317)”. E a decisão continua: “Isso significa que o agente público que ‘celebrar contrato de rateio de consórcio público sem suficiente e prévia dotação orçamentária, ou sem observar as formalidades previstas na lei’ (artigo 10, inciso XV, da Lei 8.429/1992), ainda que culposamente, poderá ter os direitos políticos suspensos por período superior ao cidadão condenado pelo desvio de verbas públicas”.
Ora, a considerar a realidade social brasileira, nada leva a concluir que as sanções impostas pelo legislador aos delitos mencionados na decisão do Supremo devem servir como parâmetro para o apenamento de outros ilícitos. A uma, porque muitas sanções do Código Penal foram fixadas ainda em 1940, quando o decreto-lei foi editado. A duas, porque as sanções acertadamente impostas pela então vigente Lei de Improbidade Administrativa são uma questão de política legislativa. A propósito, mencione-se estudo dirigido pela professora Luciana Gross Cunha, da FGV/SP, cujo objetivo era aplicar o Índice de Percepção do Cumprimento da Lei no Brasil (IPCL-Brasil): “De acordo com Mauricio Garcia-Villegas, na América Latina haveria uma espécie de ‘cultura de desrespeito à lei’, remontando à herança da colonização portuguesa e espanhola. E, como consequência, o descumprimento da lei não seria visto como moral ou socialmente reprovável”.
A considerar a realidade social brasileira, nada leva a concluir que as sanções impostas pelo legislador aos delitos mencionados na decisão do Supremo devem servir como parâmetro para o apenamento de outros ilícitos.
Entre os anos de 2019 e 2020, tivemos a experiência de atuar em gabinete de ministro no Superior Tribunal de Justiça, na área de improbidade administrativa. Foram analisados centenas de casos em matéria de improbidade, o que nos levou a algumas conclusões: 1. a quase totalidade dos processos analisados não contemplava recursos extraordinários, mas somente recursos especiais, fazendo com que as questões fossem, portanto, majoritariamente analisadas somente pelo STJ; 2. a jurisprudência dos tribunais superiores, muitas vezes consolidada, sobre diferentes temas – é o caso da improbidade administrativa –, é pautada sobre quantitativo processual e suporte fático que escapam a exame pelo STF, tornando a jurisprudência desses tribunais material de consulta indispensável para a elaboração de qualquer ato normativo sobre o tema; 3. a sanção de suspensão dos direitos políticos deve ser mantida. Primeiramente, porque é uma escolha do legislador que não esvazia direitos fundamentais, mas apenas e tão somente os restringe, o que é claramente admitido no sistema jurídico brasileiro. E depois, porque em matéria de gestão de recursos públicos é de absoluto interesse que tanto o gestor inábil quanto o agente ímprobo sejam pedagogicamente afastados desse campo, o que certamente servirá como período de reflexão pessoal e coletiva.
A sociedade brasileira não suporta mais a alocação ineficiente de recursos públicos. O cenário eleitoral está aí franqueado a novos candidatos habilitados e interessados na boa gestão do patrimônio público.
Por Ana Lucia Pretto Pereira, advogada com pós-doutorado em Processo Constitucional, é professora no Mackenzie-DF e na Universidade Católica de Brasília, coordenadora do curso de pós-graduação em Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro para Receita Federal do Brasil, Controladoria-Geral da União e Ministério da Economia, e ex-assessora de ministro na Primeira Turma do STJ. Artigo publicado originalmente na Gazeta do Povo em 18.11.2021