09/12/2021 09:35
”Ao Judiciário competirá repelir a aplicação automática de uma orientação que afronta cláusula pétrea da Constituição.”
Dizem que a força e a fraqueza do Ministério Público decorrem da sua independência funcional. Essa garantia constitucional atua como uma blindagem contra interferências que tisnem a consciência do órgão do parquet na interpretação da lei. Contudo, essa independência traz a pulverização de centros decisórios e empece a efetivação de outro princípio constitucional: a unidade do MP.
Sobre a instituição a Carta depositou graves atribuições como a iniciativa primordial da jurisdição criminal, a proteção de bens e direitos difusos, a tutela da moralidade administrativa. Ao procurador-geral da República, com outras poucas instituições, foi assegurada a iniciativa do controle concentrado de constitucionalidade. Bastante poder, portanto.
Eis o paradoxo do MP, entre a independência do órgão individual e a unidade da instituição. Fragmentado e unido, o parquet se conforma como um cardume que se reúne para enfrentar o predador, mas se pulveriza para escapar à captura. O balanço deste paradoxo, entre erros e acertos, chega a ser positivo para a sociedade brasileira. Mas com um alto custo.
As Câmaras de Coordenação e Revisão, no Ministério Público Federal e nos estaduais, são mecanismos fundamentais para reduzir as externalidades do paradoxo acima. A ideia central, com fundamento no art. 62 da Lei Complementar n. 75/93, é a troca e a oferta de informações para que as “independências” encontrem alguma unidade na atuação. Algumas excelentes soluções foram engendradas pelas orientações e notas técnicas expedidas pelas Câmaras de Coordenação, como aquelas que cuidam de estruturar um programa de leniência anticorrupção do MPF.
Outras, contudo, parecem atuar para violar a independência funcional, ao impor uma visão limitante quanto à interpretação de determinado aspecto da legislação brasileira. A ideia de orientar, por meio de enunciados e pareceres de grande envergadura, oferece aos procuradores elementos para a formação de sua convicção quanto ao exercício de suas atribuições. Não se cogita, contudo, que uma orientação venha a se transformar em algo cogente, pela conexão entre o poder de expedi-las (LC 75/93, art. 62, I, II e III), com o poder-dever de acatamento (ou não) de promoções de arquivamento. Ou, ainda, que tal atribuição orientativa possua o condão de substituir o procurador-geral da República na tarefa de aferir a iniciativa de questionar a constitucionalidade de determinada norma, em controle concentrado.
Parece ser o caso da orientação e respectiva nota técnica, recentemente divulgadas pela 5ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF, que tratam de uma pretensa irretroatividade dos efeitos benéficos da Lei 14.230/21, a reforma da Lei de Improbidade Administrativa.
À invocação do princípio da vedação à proteção deficiente houve-se por orientar todo o parquet federal para pleitear a não aplicação da reformatio in melius a casos ocorridos antes de sua vigência, mesmo que não objeto de ação judicial bastante. Ou seja, tomando por base uma compreensão derivada do princípio da proporcionalidade, essa orientação sugere o não cumprimento de uma garantia fundamental (a retroatividade benéfica ao acusado). A base do raciocínio é o entendimento, contra legem, que a reforma da Lei de Improbidade desconfigurou a legislação protetiva da moralidade administrativa.
Segundo consta da orientação, a Lei 14.230/21 modificou alguns tipos da Lei de Improbidade para incluir o dolo como requisito para configuração de um ato de improbidade e, ao fazê-lo, acabou por limitar a atuação do parquet na tutela do bem jurídico ao bom governo. Como não concordo com a lei, impõe-se o seu descumprimento sob o pálio da proporcionalidade.
Grosso modo, conforme a orientação da 5ª CCR, a proteção da moralidade no exercício de funções públicas (art. 37, §4º) obstaria a aplicação de uma garantia fundamental do cidadão, sacramentada pelo art. 5º, XL da Carta e que sequer poderia ser objeto de emenda tendente a aboli-la (CF, art. 60, §4º, IV). Ou seja, haveria um bem maior, indeterminado e abstrato, a moralidade, que justificaria derrogar premissas do devido processo legal (este também de assento constitucional).
A orientação e a respectiva nota técnica intentam criar uma interpretação baseada num tipo de “razão de Estado moral” para esvaziar garantia que sequer poderia ser objeto de emenda constitucional. Criou-se um entendimento, que se quer mandatório, a partir de um encontro inusitado entre o imperativo categórico de Kant e o decisionismo de Carl Schmitt. Um feito.
Mas o problema não para na construção tortuosa da prevalência de um valor abstrato sobre um comando constitucional concreto. A orientação tropeça em entender que exigir o dolo para condenar alguém por improbidade seria um enfraquecimento na proteção ao bem jurídico moralidade pública. Estudo de 2015 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aponta que, sob o regime anterior à reforma, apenas 4% das ações de improbidade ajuizadas no país resultaram em reparação integral do dano causado ao erário, 6% em reparação parcial e nada menos que 90% resultaram em nenhuma reparação.
O que a reforma da Lei de Improbidade faz é recolocar a lei para cumprir seus objetivos constitucionais: coibir o locupletamento e a depauperação do patrimônio público, condutas que pressupõem o agir consciente. A menos que os procuradores entendam que é moral punir gestor público por discordância de posição ou de escolha política. Para fortalecer a moralidade, propala-se uma conduta que afronta a moral.
Afinal, esse é o panorama das consequências jurídicas. Mas parece não ser disso que se trata. O ajuizamento de uma ação com tal natureza é antecedida e sucedida de ampla divulgação, com finalidade de carrear ao acusado todos os ônus de imagem decorrentes da acusação. Impor um controle maior no ajuizamento da ação, mediante a explicitação do dolo, parece interferir mais diretamente nesse tipo de comportamento – que não é característico de toda uma carreira, embora esteja presente na atuação de alguns profissionais.
Ao Judiciário competirá repelir a aplicação automática de uma orientação que afronta cláusula pétrea da Constituição. Enquanto isso, espera-se que o Conselho Nacional do Ministério Público acolha representação formulada pelo presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e faça esvaziar de efeitos uma orientação francamente inconstitucional.
O artigo foi desenvolvido pelos seguintes autores:
Alberto Zacharias Toron, doutor em Direito Penal
Antonio Cláudio Mariz de Oliveira, advogado criminalista
Danyelle Galvão, doutora em Direito Processual
Floriano de Azevedo Marques Neto, diretor da Faculdade de Direito da USP
Gustavo Badaró, professor titular de Direito Processual Penal da USP
Igor Sant’Anna Tamasauskas, doutor em Direito do Estado
Ilana Martins Luz, doutora em Direito Penal
José Luis Oliveira Lima, advogado criminalista
Luis Fernando Massoneto, professor doutor da Faculdade de Direito da USP
Pierpaolo Cruz Bottini, professor livre docente da Faculdade de Direito da USP
Ricardo Penteado, advogado especializado em Direito Político e Eleitoral
Sarah Merçon-Vargas, doutora em Direito Processual
Sebastião Botto de Barros Tojal, professor doutor da Faculdade de Direito da USP
Sérgio Rabello Tamm Renault, advogado especializado em Direito Público