A América que antes valorizava esse suor movido pela certeza interior de que o sucesso é possível, seja o sucesso de um jogador de basquete ou um de um criador de um videogame, agora vem se curvando ao fatalismo derrotista. Escreve Braulia Ribeiro.
31/05/2023 12:14
“Ave Capitalismo, pai da remuneração justa ao talento e a criatividade!”
Os filmes Air, (Amazon), de Ben Affleck, e Tetris (Apple), de Jon S. Baird, contam duas histórias reais, acontecidas nos anos oitenta. Num momento em que a palavra “capitalismo” se tornou sinônimo de exploração, injustiça e consumismo, enfim, a praga favorita de Satanás, esses dois filmes aparecem no cenário hollywoodiano. Talvez sejam um sinal de que nem tudo está perdido ainda na América.
Permita-me, leitor dar uma passadinha por Schumpeter por algumas linhas. O economista acertou em predizer o golpe fatal que sofreria o sistema capitalista. A hostilidade contra a ordem social capitalista gerada pelo próprio capitalismo seria a razão de sua derrota. Ele diz que a crítica política e a consequente hostilidade social ao capitalismo deriva de vários fatores extrarracionais, e, portanto, não poderia ser refutada racionalmente. É impressionante como em 1942, ano da primeira edição do clássico Capitalismo, Socialismo e Democracia, ele já percebia o despontar da crise moral-emocional em que nos encontramos agora em 2023, onde a oposição contra o capitalismo é quase que exclusivamente emocional, contrariando toda a experiencia empírica da humanidade, ou seja, os fatos da realidade.
É aí, no trabalho de ressuscitar as emoções favoráveis ao sistema que mora a importância desses dois filmes. Eles nos permitem ver o lado humano e meritocrático do sistema capitalista para o qual não existe substituto. Os dois filmes retomam a metáfora do sucesso que deriva do esforço do hustler, já quase esquecida em Hollywood. O hustler – palavra traduzida em português como “vigarista” mas que tem um sentido positivo em inglês – é aquele que persiste, que não mede esforços, que mergulha de cabeça no trabalho para obter o que deseja.
Até pouco tempo atrás, essa era a principal narrativa que alimentava o imaginário social americano. Se você quer alguma coisa, se esforce para lográ-la! Esse é o verdadeiro sentido do mérito. Eu “mereço” porque eu earned, outra palavra que não temos em português. O verbo to earn não significa simplesmente “ganhar” ou “receber” como traduzimos comumente, mas, sim, receber como produto do esforço, conquistar, ou granjear. Você não ganha seu salário, mas sim granjeia, ou conquista, porque ele não chega gratuitamente, mas como uma troca pelo esforço que você faz quando trabalha. Esse é o maior sentido do mérito no sistema capitalista americano. Mérito tem quem faz esforço para a obtenção de algo.
A América que antes valorizava esse suor movido pela certeza interior de que o sucesso é possível, seja o sucesso de um jogador de basquete ou um de um criador de um videogame, agora vem se curvando ao fatalismo derrotista do resto do mundo. Nas últimas décadas, a narrativa vitimizadora wokista comeu o sistema por dentro, num processo autofágico. Como diz Schumpeter, “uma civilização que carece dos meios (morais) da vontade e da disciplina para guiar-se, vai se revoltar contra esse sistema”.
Uma das histórias recentes que ilustram esse ódio autofágico é a da cantora Lady Gaga. Ela se descreve quando jovem estudante, ainda Stefani Germanotta, numa entrevista para Barbara Walters: “… eu tinha uma vontade enorme de ser uma estrela, eu era quase um monstro na maneira como era destemidamente ambiciosa…”. A disciplina, a fúria resoluta e a persistência em busca do sucesso não são mais tão apreciadas no país, o que talvez explique porque a determinação de Gaga encheu de raiva seus colegas que chegaram até a abrir uma página do Facebook, já deletada, com o título: “Stefani Germanotta, você nunca será famosa”, dedicada somente a debochar da determinada garota de 19 anos. Histórias como a dela, e como a do fundador da rede McDonald’s, Ray Kroc, retratado num filme de 2016 não muito elogioso, nos fazem pensar que talvez a quantia de ambição cultivada por uma pessoa seja diretamente proporcional à rejeição que ela recebe da comunidade que se conforma com seu status quo e que vê na uniformidade medíocre uma virtude.
E aqui chego aos filmes, sem me demorar muito nos detalhes, para não tirar o prazer do leitor de descobri-los por si mesmo. Air trata da contratação de Michael Jordan pela Nike, que em 1984 perdia para a alemã Adidas e para a Converse no mercado americano. O filme narra a perseverança de Sonny Vaccaro (Matt Damon), um caça talentos do basquete trabalhando para a Nike, em contratar Jordan assim que percebeu sua grandeza. Michael Jordan, na época ainda um jogador da liga universitária, morava com os pais na Carolina do Norte, já era cobiçado pela NBA, e, claro pelas marcas de produtos esportivos, mas não se comparava aos talentos principais Magic Johnson, três anos mais velho que ele.
Sonny percebe o que Jordan poderia se tornar e corre atrás do contrato mesmo sabendo que a Nike não era páreo para as poderosas Adidas e Converse. O final não preciso esconder, já que todos sabemos que o Air Jordan se tornou o sapato mais cobiçado pelos garotos americanos até hoje, e foi a razão do crescimento astronômico da Nike que em poucos anos comprou a Converse. O filme traz um Matt Damon excelente, e uma Viola Davis na melhor forma, como a mãe de Jordan. O final emociona nos mostrando mais uma vez a razão porque continuar acreditando que o capitalismo como o único regime econômico que torna possível algum tipo de “justiça” quando se trata de recompensa ao talento e ao trabalho duro.
O filme Tetris já vai mais fundo na comparação do capitalismo com a alternativa. Mistura de comédia e thriller político, o filme conta a história verdadeira da luta pelos direitos autorais sobre o videogame Tetris, inventado por um matemático, funcionário da companhia ELORG do governo da USSR. O protagonista é Henk Rogers (Taron Egerton), um pequeno empresário no final dos anos 80, época que ainda era a aurora dos videogames. Henk é um criador de games também, mas sem sucesso, e se encanta com o game Tetris, ainda não explorado devidamente. Henk então resolve ir atrás dos direitos para vender à japonesa Nintendo que estava lançando o Game Boy.
Acontece que os direitos já eram disputados por dois outros empresários bem maiores, Robert Stein (Toby Jones), e pelo magnata britânico Robert Maxwell (Roger Allan) e seu filho Kevin (Anthony Boyle). E como tudo que se criava na USSR era propriedade do governo, os direitos eram negociados diretamente com funcionários do Kremlin, assessorados pela KGB, “pelo bem da União Soviética”. O criador do game, Alexey Pajitnov (Nikita Efremov), aparece como um mero espectador das negociações. O filme expõe, além da injustiça do regime que transformou o Estado num gigantesco paquiderme se alimentando de seus filhos, a corrupção e a incompetência do sistema nos anos finais da perestroika de Gorbachev. A cena final é emocionante mostrando a família de Pajitnov chegando finalmente aos Estados Unidos, a terra da livre iniciativa. Depois de uma existência miserável onde tudo o que produzia era sugado por um Estado omnipresente e cruel, que tinha jogado seu pai na cadeia, Pajitnov teve a oportunidade de viver e criar debaixo de outro regime, e finalmente, depois de vencido o prazo de propriedade do Estado russo, começar a receber royalties por sua criação. O game Tetris é um dos maiores vídeo games já inventados e foi até estudado por seu poder viciante conhecido como “o efeito Tetris”. Alexey Pajitnov é reconhecido como sendo um dos mais influentes criadores de games de todos os tempos. Ave Capitalismo, pai da remuneração justa ao talento e a criatividade!
Por Braulia Ribeiro é mestre em Linguística, mestre em Divindade pela Yale University e doutoranda em História e Teologia Política na University of St. Andrews (Escócia).