Opinião – O Direito brasileiro sob ataque

Alguns membros dos nossos tribunais superiores são cada vez mais pródigos em produzir um Direito desprovido de qualquer senso de proporção ou equilíbrio. Escreve Denise Albano.

12/07/2023 06:59

“A escultura colocada diante do STF seria um prenúncio das distorções do Direito que hoje assistimos no país?”

Pesquisa aponta que 31% dos brasileiros consideram como ruim ou péssimo o trabalho desenvolvido pelo STF. Foto: Fellipe Sampaio/STF

No Brasil, nos últimos anos, tem sido frequentes ataques viscerais à ordem jurídico constitucional e a todo um conhecimento produzido sobre ela. E, paradoxalmente, muitos desses ataques partem de autoridades que ocupam os escalões mais altos do sistema jurídico brasileiro.

São muitos os exemplos dessas investidas. Elas vão da violação ao princípio da legalidade assentado na ideia de que somente lei prévia e estrita pode definir o que é crime, passando pelo total esvaziamento da garantia constitucional da inviolabilidade dos parlamentares por seus votos, palavras e opiniões, até o aviltamento do princípio acusatório, que consiste na rígida separação entre órgãos que investigam/acusam e o órgão que julga.

A relação desses ataques é ainda mais extensa e também inclui: a) atropelo ao princípio da duração razoável de procedimentos, diante da constatação de inquéritos que duram vários meses e até anos sem justificativa plausível; b) violação ao princípio da ampla defesa, em que vemos advogados sem acesso às provas já produzidas contra seus clientes; c) usurpação das prerrogativas do Ministério Público que tem a titularidade exclusiva para denunciar ou arquivar inquérito policial; d) atropelo das regras de competência, inaugurando-se uma espécie de “competência seletiva” por escolha do julgador, levando, assim, a um esvaziamento do princípio do juiz natural e da imparcialidade.

Temos ainda, e) violação à regra de que não há responsabilidade penal presumida, sem apoio em evidências de autoria e sem uma clara individualização da conduta do acusado; f) desrespeito ao princípio do contraditório, visto na fixação de prazos extremamente exíguos – muitos, de apenas 24h – para que o Ministério Público ou advogados se manifestem, como em casos de buscas e apreensões ou prisões preventivas alvejando dezenas de pessoas; g) fim da regra da preclusão que veda o reexame de matérias meramente irregulares ou relativamente nulas e já superadas no processo; h) adoção do poder geral de cautela que a doutrina diz ser vedado na esfera criminal, de modo que qualquer medida que restrinja liberdades (da liberdade de ir e vir até a de dispor dos seus próprios bens) no curso de um procedimento de investigação ou julgamento penal somente pode ser determinada havendo expressa previsão em lei.

Essa relação é meramente ilustrativa e há mais casos que despertam preocupação diante do que está em curso no país. Enquanto na maioria dos países ocidentais as Cortes Superiores cumprem uma função estabilizadora do Direito, no Brasil, ao contrário, são frequentes decisões judiciais esdrúxulas e casuísticas, em atropelo a precedentes das próprias Cortes e inovações processuais que passam ao largo da lei e de uma racionalidade que as justifiquem.

Todos esses ataques estão minando o principal parâmetro que forjou o Direito ao longo de séculos: o senso de proporção. Não sem razão, a imagem popular mais associada ao Direito é uma balança em equilíbrio presente em uma das mãos das deusas da Justiça da Antiguidade Clássica, com um destaque menor para a espada na outra mão. Mas a nossa deusa da Justiça, obra do artista Alfredo Ceschiatti (1918-1989) que orna a frente do STF, tem apenas a espada sobre o colo, estando ausente a figura da balança.

Alguns membros dos nossos tribunais superiores são cada vez mais pródigos em produzir um Direito desprovido de qualquer senso de proporção ou equilíbrio. Frequentemente, é mera demonstração voluntariosa de força. Então, podemos indagar: a escultura colocada diante do STF seria um prenúncio das distorções do Direito que hoje assistimos no país?

 

 

 

 

Por Denise Albano é mestre e doutora em Direito e professora de Direito na UFS.

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