Embora Lula alegue que Dilma “foi julgada por uma coisa que não aconteceu”, o impeachment foi bem fundamentado e acompanhado do STF. Escreve Bruna Komarchesqui.
30/08/2023 07:13
“O processo de impeachment foi aberto em cima da operação Lava Jato e Pedaladas Fiscais”
Depois de vir classificando o impeachment de Dilma Rousseff como “golpe” desde o início deste mandato, Lula declarou neste fim de semana que vai buscar uma forma de reparar a suposta injustiça sofrida pela petista em 2016. A ideia, que ganhou coro com a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, é fazer uma devolução simbólica do mandato a Dilma, assim como o Congresso Nacional fez em 2013 com João Goulart (1919-1976), destituído pelo golpe militar de 1964.
Os petistas alegam que Dilma foi inocentada pelo TRF-1 na acusação das “pedaladas fiscais”, porém, o que o Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1) fez foi manter, por 3 votos a 0, o arquivamento da ação de improbidade administrativa contra a ex-presidente, sem resolução de mérito. “Na semana passada, a Justiça Federal em Brasília absolveu a companheira Dilma da acusação que a ela tinha sido feita da pedalada. A Dilma foi absolvida e eu agora vou discutir como é que a gente vai fazer. Não dá para reparar o direito político porque se ela quiser voltar para ser presidente, eu quero terminar o meu mandato”, disse Lula.
“Entendo que cabe um projeto de resolução nesse sentido com base na decisão do TRF-1, que deixa claro que o impeachment foi uma grande farsa, que a história das pedaladas foi uma armação, literalmente um golpe”, afirmou Gleisi.
Embora Lula alegue que Dilma “foi julgada por uma coisa que não aconteceu”, o processo de impeachment foi bem fundamentado juridicamente e teve acompanhamento do Supremo Tribunal Federal (STF).
O processo
A sessão do Senado que cassou o mandato de Dilma terminou às 13h55 do dia 31 de agosto de 2016, com 61 votos a favor e 20 contra, colocando um fim aos 13 anos da Era PT na Presidência e aos nove meses em que o processo se arrastou no Congresso. Primeira mulher a ocupar o cargo, Dilma foi a segunda pessoa a ter o mandato cassado (o primeiro foi Fernando Collor, em 1992) na recente história democrática brasileira.
O pedido de impeachment aceito pelo então presidente da Câmara, Eduardo Cunha, em dezembro de 2015, foi apresentado dois meses antes pelos juristas Hélio Bicudo, Miguel Reale Jr. e Janaína Paschoal. O documento apontava três acusações contra o governo Dilma: os prejuízos com a corrupção na Petrobras (o que incluía a compra da refinaria de Pasadena e os escândalos desnudados pela Lava Jato), a abertura de créditos suplementares para o Orçamento sem passar pelo Congresso e manobras contábeis para maquiar gastos federais excedendo os limites da lei, as chamadas “pedaladas fiscais”. O processo de impeachment foi aberto em cima dos dois últimos pontos.
Naquele momento, a tese de golpismo já era levantada por petistas, mas foi rejeitada inclusive pelo agora vice-presidente Geraldo Alckmin (então governador de São Paulo). “Eu tenho ouvido muito que o impeachment é golpe. O impeachment é previsto na Constituição brasileira, e a Constituição não é golpista”, resumiu.
O que diz a Constituição
O processo de responsabilização e destituição do Presidente da República por crime de responsabilidade, chamado de impeachment, está previsto na Constituição Federal de 1988. No artigo 52, a Carta Magna dispõe que cabe ao Senado Federal “processar e julgar o Presidente e o Vice-Presidente da República nos crimes de responsabilidade”.
A condenação, que precisa alcançar dois terços de votos dos senadores, resulta em “perda do cargo, com inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública”. Apesar disso, Dilma não perdeu seus direitos políticos após o impeachment, graças a um pedido do então líder da bancada do PT no Senado, senador Humberto Costa, ao presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Ricardo Lewandowski, para que as penalidades fossem votadas separadamente.
No artigo 85, a Constituição ainda especifica como “crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra: I – a existência da União; II – o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação; III – o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais; IV – a segurança interna do País; V – a probidade na administração; VI – a lei orçamentária; VII – o cumprimento das leis e das decisões judiciais”.
Apesar de o processo ser apontado pelos governistas como uma conspiração da oposição, e portanto um “golpe”, o mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Coimbra André Felipe Portugal recorda que “o próprio sistema optou por possibilitar um julgamento também político”, uma vez que a Constituição estabelece “que cabe exclusivamente ao Senado Federal o juízo de valor a respeito da prática de crimes de responsabilidade pelo presidente da República”. “Deixadas as preferências políticas de lado, não é possível se referir a isso como uma ruptura, nem mesmo branda, da ordem institucional: o próprio sistema autoriza que assim seja. Por isso mesmo, o impeachment de Dilma não é um golpe”, conclui.
Rito foi avalizado pelo STF
O rito do impeachment de Dilma foi definido pelo então presidente do STF, Ricardo Lewandowski, em agosto de 2016, garantindo ampla defesa à acusada. A petista teve direito a uma fala de 30 minutos, mesmo tempo concedido à argumentação da acusação. Além disso, cada parte teve o direito de convocar seis testemunhas para serem ouvidas no dia da votação final.
Durante o julgamento, Dilma negou os crimes em discurso no Senado. “Não pratiquei ato ilícito. Está provado que não agi dolosamente em nada. Os atos praticados estavam inteiramente voltados aos interesses da sociedade, nenhuma lesão trouxeram ao erário ou ao patrimônio público”, declarou.
Responsável por comandar o processo de impeachment, de acordo com a legislação, Lewandowski também presidiu a sessão de julgamento no Senado e leu em plenário a sentença de destituição da presidente.
Pedaladas fiscais
Dilma Rousseff foi condenada com a perda do mandato pelos senadores por atrasar propositalmente repasses a bancos, como forma de maquiar as contas do governo, as chamadas “pedaladas fiscais”. O objetivo das manobras contábeis era criar um cenário artificial em que o governo gastava menos do que a arrecadação, o que não ocorria naquele momento. Conforme o TCU, a União não estava ressarcindo no prazo os bancos que pagavam os benefícios sociais, como o Bolsa Família, o que caracteriza uma operação de empréstimo. Somente no primeiro semestre de 2015, foram R$ 40 bilhões em repasses atrasados.
“Essa conduta fere a Lei de Responsabilidade Fiscal, pois o artigo 36 da Lei 101/200 proíbe a concessão de empréstimo pelos bancos públicos à União. Além disso, o governo possuía despesas não honradas superiores aos valores arrecadados, e essas despesas não foram contabilizadas caracterizando, assim, uma ‘maquiagem’ nas contas públicas”, detalha a procuradora da República Thaméa Danelon.
No processo, também foi discutida a edição pela petista de três decretos para originar créditos suplementares sem autorização do Congresso Nacional. De acordo com o pedido protocolado pelos juristas, os decretos editados por Dilma entre 2014 e 2015 resultaram na abertura de R$ 18,4 bilhões em créditos suplementares.
Manifestações populares
As acusações de crime contra Dilma Rousseff receberam o apoio popular, o que se evidenciou pelas manifestações ganhando força em todo o país. Em março de 2016, cerca de 3,5 milhões de brasileiros foram às ruas contra o governo, indicando para analistas que os dias da petista na Presidência estavam contados.
“O fato é que o governo, hoje, provavelmente já perdeu sua maioria, está em uma espiral descendente. É uma questão de tempo”, analisou o cientista político Geraldo Tadeu Monteiro, do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), para a Gazeta do Povo na época.
Leniência na Petrobras
Os juristas que protocolaram o pedido de impeachment argumentaram ainda que Dilma agiu como se não soubesse das irregularidades na Petrobras. Em 2014, durante o pleito eleitoral, ela negou os desvios ocorridos na estatal, embora tenha atuado como presidente do Conselho de Administração da Petrobras, como ministra-chefe da Casa Civil e ministra de Minas e Energia do Brasil antes de ser presidente do país. Dilma também manteve Graça Foster na presidência da estatal de fevereiro de 2012 a fevereiro de 2015. “Foi sob a gestão de Graça que parte do ‘saque’ à Petrobras foi realizado”, recorda o jurista Ives Gandra da Silva Martins.
Ele acentua que a legislação brasileira não restringe a improbidade administrativa a casos de enriquecimento ilícito. “A Lei 1.079/50, modificada pela Lei 10.028, declara, em seu artigo 9.º, inciso III, ser crime de responsabilidade do agente público não tornar efetiva a responsabilidade de seus subordinados em face de delitos funcionais ou atos contrários à Constituição”, lembra. “Dilma demonstrou, pelo menos, se não conivência, uma fantástica incapacidade gestora e uma inacreditável omissão, a que se acrescem negligência, imperícia e imprudência em permitir que tudo isso ocorresse, além do fato de não ter tornado efetiva a responsabilidade desses subordinados pelos atos lesivos que praticaram”, analisa o jurista.
Por Bruna Komarchesqui Jornalista e mestre em Comunicação pela Universidade Estadual de Londrina. Matéria publicada originalmente na Gazeta do Povo em 29.08.2023.