Opinião – Decisões judiciais não bastam para reescrever a história

Nesse e em tantos outros casos que tramitam na bagunçada Justiça brasileira, fica evidente a inutilidade de tentar reescrever a história com decisões judiciais. Escreve Diogo Schelp.

12/09/2023 12:18

“O próprio Lula, durante a campanha eleitoral do ano passado, foi obrigado a admitir que os escândalos de corrupção na Petrobras”

Ministro Dias Toffoli. Foto: Rosinei Coutinho/SCO – STF

O ordenamento jurídico brasileiro é uma bagunça, demasiado poroso a interpretações subjetivas da lei, às preferências pessoais ou até interesses imediatos de juízas e juízes, o que dá margem a sentenças judiciais estapafúrdias, contraditórias entre si e que passam ao largo dos fatos. Por vezes, têm-se a impressão que o juízo quer reescrever os próprios fatos — ou, em última instância, até reescrever a história.

Decisões judiciais, contudo, não são capazes de reescrever a história. Elas têm, evidentemente, efeitos concretos para as partes envolvidas ou para a sociedade. Réus podem acabar sendo condenados injustamente ou, ao contrário, terem suas sentenças anuladas por filigranas processuais. Detalhes burocráticos podem jogar acusados ou vítimas em um enredo kafkiano, barrando-os até mesmo do direito constitucional de recorrer, ou, em muitos casos, resultar em escancarada e escandalosa impunidade para infratores.

Historiadores dedicam-se a analisar processos sociais e econômicos, personagens e acontecimentos para compreender o passado. Decisões judiciais podem compor o material de estudo para escrever a história, mas não são nem de longe a única ou principal fonte. Para efeitos históricos, decisões judiciais não são a última palavra sobre o que é fato ou mesmo sobre qual é a interpretação correta de um fato. Mas elas podem ajudar a entender as forças em jogo em torno de determinado fato histórico.

O presidente Lula quer reescrever a história. Pretende, por exemplo, fazer uma devolução simbólica do cargo presidencial a Dilma Rousseff, com o argumento de que seu impeachment foi ilegítimo ou, nas suas palavras, “um golpe”. Também tentou usar a anulação, pelo STF, das condenações que o levaram à prisão no âmbito da Operação Lava Jato para se apresentar como inocente das acusações de corrupção e lavagem de dinheiro.

Os desdobramentos internacionais das investigações da Lava Jato mostram que os fatos eram fatos não apenas para juízes e procuradores brasileiros, mas também para os estrangeiros. Os complexos esquemas de corrupção revelados pela Lava Jato por meio das delações e das provas colhidas são estudados e teorizados nas universidades por cientistas políticos, economistas e historiadores brasileiros e estrangeiros.

Agora, recebeu mais uma ajudinha na sua tentativa de reescrever a história com a decisão de Dias Toffoli, ministro do STF, de anular provas do acordo de leniência da Odebrecht que embasaram muitos dos processos da Lava Jato e que resultaram na devolução de bilhões de reais desviados. A decisão de Toffoli em si ignora fatos bem documentados e precedentes jurídicos consagrados (por exemplo, ele argumentou que era necessário haver cooperação internacional firmada com autoridades suíças para validar provas materiais que, no entanto, haviam sido recuperadas no exterior e entregues voluntariamente pela construtora aos investigadores brasileiros). E, apesar de não fazer juízo de mérito dos atos envolvendo a empreiteira, sua decisão está sendo usada por apoiadores de Lula para vender a ideia de que tudo o que foi apurado pela Lava Jato não passou de uma fantasia.

Impossível. O próprio Lula, durante a campanha eleitoral do ano passado, foi obrigado a admitir que os escândalos de corrupção na Petrobras durante os governos do PT eram reais. “Você não pode dizer que não houve corrupção se as pessoas confessaram”, disse Lula em entrevista ao Jornal Nacional, da TV Globo.

São impressionante as reviravoltas de posicionamento da corte máxima do país e da própria postura dos ministros em relação aos casos envolvendo a Lava Jato. O ministro Dias Toffoli, por exemplo, trocou a rigidez do passado (ele impediu que o então detento Lula fosse ao enterro do irmão, em 2019) pelo atual empenho em desmantelar provas e, consequentemente, condenações que renderam aos governos do PT a pecha de ter encampado o maior escândalo comprovado da história do país.

Os desdobramentos internacionais das investigações da Lava Jato mostram que os fatos eram fatos não apenas para juízes e procuradores brasileiros, mas também para os estrangeiros. Os complexos esquemas de corrupção revelados pela Lava Jato por meio das delações e das provas colhidas são estudados e teorizados nas universidades por cientistas políticos, economistas e historiadores brasileiros e estrangeiros.

Nesse e em tantos outros casos que tramitam na bagunçada Justiça brasileira, fica evidente a inutilidade de tentar reescrever a história com decisões judiciais.

 

 

 

 

Por Diogo Schelp, jornalista, foi editor executivo da revista Veja, onde trabalhou durante 18 anos. Fez reportagens em quase duas dezenas de países e é coautor dos livros “Correspondente de Guerra” (Editora Contexto), finalista do Prêmio Jabuti 2017, e “No Teto do Mundo” (Editora Leya).

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