É muito difícil conseguir emplacar uma política externa que traga resultados quando se adota uma postura de confrontação com os vizinhos. Escreve Diogo Schelp.
20/11/2023 10:57
“Milei não terá o respaldo, para uma eventual política externa de confrontação, de nenhum país relevante”
Dono de uma vitória acachapante nas eleições presidenciais deste domingo (19) na Argentina, Javier Milei recebeu dos seus compatriotas um claro depósito de confiança para colocar em práticas seu programa político, por mais inédito, ousado e polêmico que possa ser em muito pontos. Ele tem inequívoca legitimidade para aplicar seus planos. Mas enfrentará muitas barreiras internas e externas, seja pelo baixo apoio que terá nas duas casas legislativas argentinas, seja porque, pelos menos na primeira metade do mandato, estará isolado em relação aos governos dos países vizinhos.
A maioria dos argentinos deixou evidente, com sua opção nas urnas, que está cansada de décadas de populismo e incompetência peronista, especialmente em sua variante kirchnerista. Mas essa mensagem não é tão clara, pelo menos por enquanto, quando falamos da configuração do Congresso e dos governos provinciais. Nessas duas esferas — o parlamento e a política regional — o grupo político do presidente eleito não tem força.
A coalizão de Milei terá apenas 38 de um total de 257 deputados e 8 de 72 senadores. Mesmo contando com o eventual apoio de parte dos parlamentares de centro-direita alinhados com o ex-presidente Mauricio Macri e com a candidata derrotada Patricia Bullrich, que pediram votos para Milei no segundo turno, o novo presidente terá, na melhor das hipóteses, um terço do Congresso ao seu lado para votar pelas mudanças que ele prometeu ao país.
Com isso, sem a aprovação do Congresso, será muito difícil derrubar subsídios, privatizar estatais ou realizar as transformações radicais que pretende no sistema monetário, como substituir o peso pelo dólar e fechar as portas do Banco Central.
Milei afirmou que poderia colocar algumas de suas políticas de pé por meio de plebiscito, consultando diretamente a população, mas mesmo para isso precisa da aprovação dos legisladores. Há, sim, medidas que ele pode tomar para diminuir os gastos do Estado sem precisar confrontar a oposição no parlamento, mas o alcance é limitado.
É bastante provável que, diante dos obstáculos que ele enfrentará na política doméstica, Milei procure deixar uma marca de diferença em relação aos seus antecessores na política externa. Mas também aí enfrentará barreiras, pois se verá, ao menos nos primeiros anos do mandato, isolado na região.
Com exceção do presidente Lacalle Pou, no Uruguai, com quem Milei diz ter afinidade política e que, como ele, prefere livrar-se das amarras institucionais do Mercosul, o entorno regional é dominado por presidentes de esquerda, alguns dos quais reagiram de maneira nada diplomática à notícia da sua vitória. É muito difícil conseguir emplacar uma política externa que traga resultados quando se adota uma postura de confrontação com os vizinhos, sem que haja um parceiro forte para trilhar junto o mesmo caminho.
Lacalle Pou quer fazer acordo bilateral com a China à revelia das limitações do Mercosul e pode até alinhar-se a Milei em outros temas pontuais, mas sua postura é de pragmatismo, não ideológica, e dificilmente vai se engajar em enfrentamentos desnecessários e sem ganhos claros com o Brasil, por exemplo.
O governo brasileiro, por mais insatisfeito que esteja com a vitória de Milei, vai tentar manter as relações positivas em nível institucional, até por que isso interessa do ponto de vista comercial. Durante o governo Jair Bolsonaro, por exemplo, as relações com a Argentina de Alberto Fernández não eram nada amigáveis, mas mantiveram-se funcionais no básico que importava (nos dois sentidos).
Milei não terá o respaldo, para uma eventual política externa de confrontação, de nenhum país relevante. Isso pode mudar a partir de 2025, caso Donald Trump retorne à presidência dos Estados Unidos, uma possibilidade bastante plausível, ou conforme a atual onda vermelha (de governos de esquerda na América Latina) começar a se retrair. Até lá, ele permanecerá isolado internacionalmente.
Seria algo parecido, mas com sinais ideológicos invertidos, com o que aconteceu com Hugo Chávez, na Venezuela. Nos primeiros anos de seus governo, Chávez estava razoavelmente isolado do ponto de vista político na América Latina, tanto que buscava se aproximar do presidente Fernando Henrique Cardoso, no Brasil, enquanto ia para o confronto retórico com o americano George W. Bush. Chávez só começou a se sentir verdadeiramente “empoderado” em sua política externa conforme novos governos de esquerda foram assumindo o comando de países como o Brasil, o Equador, a Bolívia e a Argentina, por exemplo. E o grande trunfo na manga que Chávez passou a ter, e que Milei não tem, foi o poder de persuasão dos petrodólares.
Milei, no fim das contas, precisará se concentrar nos problemas reais do dia a dia dos argentinos, castigados por anos de políticas peronistas desastradas. Controlar a inflação e recuperar as divisas argentinas serão os desafios mais urgentes do novo presidente. Dificilmente conseguirá atingir esses objetivos no curto prazo com um choque econômico que, além de nunca ter sido testado completamente em outros países, enfrentará resistência de parlamentares e governadores das províncias argentinas.
Isolado dentro e fora do país, apesar do claro mandato que recebeu dos argentinos, Milei precisará demonstrar uma grande capacidade de adaptação política para não levar a nação para um atoleiro ainda maior do que já se encontra.
Por Diogo Schelp, jornalista, foi editor executivo da revista Veja, onde trabalhou durante 18 anos. Fez reportagens em quase duas dezenas de países e é coautor dos livros “Correspondente de Guerra” (Editora Contexto), finalista do Prêmio Jabuti 2017, e “No Teto do Mundo” (Editora Leya).