Opinião – As polêmicas do projeto que regulamenta motoristas por aplicativo

O caminho mais adequado decorre da experiência, do exame de cada caso, da investigação e do teste prático. Escreve Arthur Felipe das Chagas Martins.

24/04/2024 05:51

“Daqui a alguns anos presenciaremos outro conflito muito similar ao atual”

Foto: Aniele Nascimento

Enviado ao Congresso para aprovação no último dia 4 de março, o projeto de lei que pretende regulamentar o trabalho de motoristas de aplicativos é alvo de polêmicas. O questionamento central é se esses trabalhadores devem ser enquadrados como empregados ou prestadores de serviço e se a regulamentação faz sentido ou não para os envolvidos. A celeuma é fruto da incerteza causada pela falta de regulamentação dessa modalidade de trabalho que, durante tanto tempo, sobreviveu à míngua de leis que dissessem com clareza qual era a relação entre trabalhadores e plataformas.

Seja você favorável ao enquadramento dos motoristas de aplicativos como empregados ou favorável à manutenção da independência desses trabalhadores como autônomos, temos de concordar com um ponto: há uma carência na legislação sobre o tema. Para entendermos melhor as nuances da questão, vamos primeiro definir o que é um empregado, de acordo com a nossa já oitentona Consolidação das Leis do Trabalho: a regra no país é a de que uma pessoa física que trabalha pessoalmente, habitualmente, respondendo ordens e recebendo remuneração é um empregado, com direito a anotação em carteira de trabalho e diversas garantias mínimas.

Não há como criticar especificamente esse entendimento, mas está claro que hoje há novas formas de trabalho além do vínculo empregatício voltado à era industrial. E para essas novas formas nem sempre uma lei aprovada em 1943 será completamente aplicável. A legislação brasileira ainda não traz uma resposta adequada a como os trabalhadores situados nesta exceção dos motoristas de aplicativos devem ser tratados, ficando a cargo do Poder Judiciário, quando provocado, aplicar o direito ao tema. O debate faz-se necessário, uma vez que, segundo levantamento do IBGE de 2022, os motoristas de aplicativos formavam 1,5 milhão de trabalhadores no país.

Hoje, oficialmente, a relação entre os motoristas de aplicativos e as plataformas é de trabalho autônomo. As empresas se sustentam no argumento de que o trabalhador atua somente nos horários que quer, com independência, usando veículo próprio e assumindo o risco da sua atividade, recebendo boa parte do que é pago pelo usuário desses sistemas.

O Projeto de Lei 1471/22, que já conta com mais de uma dezena de acréscimos (entre apensos e acessórios), propõe a criação de uma nova categoria: o “trabalhador autônomo por plataforma”, ou “autônomo plataformizado”. Dispondo sobre questões ligadas à saúde, segurança e vinculação do trabalhador à Previdência Social, o projeto visa garantir uma remuneração mínima a quem atua nessa modalidade, estendendo a eles alguma cobertura securitária. Do lado do governo, a arrecadação pública teria um impacto na casa dos R$ 280 milhões.

Segundo o PL, o trabalhador continuará sendo autônomo. Apenas contará com algumas proteções previamente definidas em lei. É importante citar que o que está em discussão trata somente de motoristas de aplicativo, ou seja, quem atua sobre quatro rodas. A promessa é a de que o trabalho prestado por motociclistas de entregas será alvo de regulamentação futura, já que não houve consenso neste momento entre governo, trabalhadores e empresas desta modalidade.

Aqueles que são contra a regulamentação defendem que alguns trabalhadores sequer desejam ser registrados, exatamente por essa dita “autonomia” comum ao prestador de serviços. Fundamentam a legalidade da condição de autônomos como expressão do livre exercício de atividade econômica estatuída na Declaração de Direitos de Liberdade Econômica – a Lei 13.784/2019: “Art. 1º Fica instituída a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, que estabelece normas de proteção à livre iniciativa e ao livre exercício de atividade econômica e disposições sobre a atuação do Estado como agente normativo e regulador, nos termos do inciso IV do caput do art. 1º, do parágrafo único do art. 170 e do caput do art. 174 da Constituição Federal. 1º O disposto nesta Lei será observado na aplicação e na interpretação do direito civil, empresarial, econômico, urbanístico e do trabalho nas relações jurídicas que se encontrem no seu âmbito de aplicação e na ordenação pública, inclusive sobre exercício das profissões, comércio, juntas comerciais, registros públicos, trânsito, transporte e proteção ao meio ambiente”.

Na Justiça do Trabalho, há decisões em todos os sentidos – tanto reconhecendo o status de empregado a trabalhadores das plataformas, quanto reconhecendo a autonomia que impede a mesma declaração de vínculo empregatício. Algumas delas eventualmente ganham notoriedade – como a sentença recentemente proferida pela 4ª Vara do Trabalho de São Paulo, nos Autos da Ação Civil Pública nº 1001379-33.2021.5.02.0004, que condenou a Uber a não somente reconhecer o vínculo de emprego com todos os motoristas da plataforma, mas também a pagar multa de modestos um bilhão de reais. Eis trecho da decisão, proferida em setembro/2023, que já foi alvo de recurso: “Não se trata nem sequer de negligência, imprudência ou imperícia, mas de atos planejados para serem realizados de modo a não cumprir a legislação do trabalho, a previdenciária, de saúde, de assistência, ou seja, agiu claramente com dolo, ou se omitiu em suas obrigações dolosamente, quando tinha o dever constitucional e legal de observar tais normas.”

Efetivamente, o reconhecimento de vínculo empregatício entre plataforma e motorista de aplicativo é o mesmo que declarar a existência de uma fraude à legislação do trabalho. Mas a mesma Lei 13.784/2019 traz disposições que indicariam em sentido contrário: “Art. 3º São direitos de toda pessoa, natural ou jurídica, essenciais para o desenvolvimento e o crescimento econômicos do País, observado o disposto no parágrafo único do art. 170 da Constituição Federal: (…) V – gozar de presunção de boa-fé nos atos praticados no exercício da atividade econômica, para os quais as dúvidas de interpretação do direito civil, empresarial, econômico e urbanístico serão resolvidas de forma a preservar a autonomia privada, exceto se houver expressa disposição legal em contrário”.

Ora, se a plataforma de aplicativos estaria praticando atos que, por lei, gozariam de presunção de boa-fé, declarar que a relação entre motoristas e plataforma foram planejados para descumprir a legislação trabalhista parece um contrassenso. Com o legislador exercendo a sua função de regulamentar o tema, terá sido dado o primeiro passo para a pacificação da questão – seja pendendo para um ou outro lado da balança.

Abrir mão da disputa pelo vínculo empregatício para reconhecer-se como trabalhador autônomo pode representar vantagem ou desvantagem, dependendo do ponto de vista adotado. O trabalhador autônomo, de fato, tem muita liberdade. Pode trabalhar em horários que melhor lhe couberem e tem remuneração melhor do que a de um vínculo empregatício.

Entretanto, há a questão da incidência de alíquota em favor da Previdência Social, para que o trabalhador autônomo tenha acesso a cobertura securitária. Essa alíquota será de 20% da remuneração para as plataformas, e 7,5% para os trabalhadores. Isso pode provocar um achatamento no valor da remuneração dos motoristas, visto que qualquer acréscimo gerará mais custo às plataformas.

Há, também, uma clara precarização da relação de trabalho, fruto do retrocesso no mercado de trabalho brasileiro presenciado entre os anos de 2016 e 2022 mencionado pelo próprio Ministro do Trabalho e Emprego, Luiz Marinho. Ainda que esta lei busque garantir direitos mínimos, há de se convir que o “mínimo” apenas remunera minimamente quem se dispõe a passar tantas horas atrás de um volante.

A criação e aprovação de uma lei é o primeiro passo. Ainda que ela venha a sofrer modificações ou acréscimos posteriormente, terá sido o ponto de partida para a regulamentação dessa modalidade de trabalho. À míngua de dispositivos legais, abre-se espaço à livre argumentação e justificação de decisões judiciais, como se o julgador primeiro formasse seu convencimento, e depois buscasse explicar o porquê daquilo. Este caminho naturalmente não é adequado porque cada julgador, naturalmente, traz suas convicções pessoais e, ainda que tente, dificilmente conseguirá proferir um voto, uma sentença completamente desvinculada dessas convicções.

O caminho mais adequado decorre da experiência, do exame de cada caso, da investigação e do teste prático. Talvez o que estejamos presenciando com o Projeto de Lei atualmente em discussão seja exatamente isso: após tantos julgados e tantas opiniões divergentes a respeito de um mesmo assunto, finalmente busca-se criar uma lei que pacifique toda e qualquer discussão. Fica, entretanto, uma ressalva: a sociedade muda constantemente. Uma lei pode atender a este momento histórico, mas se ela não for alvo de constantes atualizações e correções, daqui a alguns anos presenciaremos outro conflito muito similar ao atual.

 

 

 

 

Por Arthur Felipe das Chagas Martins é advogado, especialista em Direito e Processo do Trabalho e Direito Acidentário, mestrando em Direito do Trabalho.

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