São de esquerda a abóbora orgânica, as multinacionais que acham o Brasil incapaz de cuidar da Amazônia e o futebol feminino. Escreve J.R. Guzzo.
25/04/2024 11:59
“São de direita os pagadores de imposto, os garimpeiros e os motoboys que não querem carteira assinada.”
No ambiente mental cada vez mais idiota em que se encontra o debate político geral, no Brasil e no mundo, está sendo formada uma nova e neurastênica divisão entre coisas de “esquerda” e coisas de “direita”. Era mais fácil, antigamente, separar umas das outras.
Esquerda era ditadura do proletariado, socialização dos meios de produção, propriedade coletiva e mais do mesmo; um calouro de centro acadêmico aprendia isso tudo em cinco minutos. Direita era o capitalismo, a propriedade privada e o imperialismo americano. Hoje, porém, está tudo mais complicado. Há novidades, muitas vezes inesperadas, em torno do que é de esquerda ou de direita – e as pessoas que querem estar num dos dois lados precisam ficar atentas para não acabar, por falta de informação, no campo contrário.
Não pergunte por que, exatamente, tal coisa é de esquerda ou de direita – muitas vezes não há resposta racional para esse tipo de pergunta. É mais prático seguir a classificação oficial em vigor no momento, e que está disponível na mídia, nas mesas redondas de televisão e nas conversas de pessoas tidas como inteligentes. Elon Musk, por exemplo, para se ficar no personagem mais falado do momento: não há nada mais de direita, ou mesmo de “extrema direita”, do que ele. Na verdade, Musk é um retrato perfeito da nova sintaxe ideológica.
Era de esquerda quando seu nome vinha sempre acompanhado das palavras “carro” e “elétrico” – porque o carro elétrico, já pode tomar nota, é de esquerda. Ficou de direita quando comprou o Twitter por 45 bilhões de dólares e acabou com a censura interna na plataforma – que, justamente, era de esquerda até então, mas virou de direita quando Musk introduziu ali a liberdade de expressão. Ponha na sua lista, a propósito: liberdade de expressão é uma das coisas mais de direita que se pode encontrar no mundo de hoje.
Da mesma forma, são claramente de esquerda a máscara da Covid, a “crise do clima” e os moradores de rua. São de direita os “agrotóxicos”, as pessoas que não devem nada e os que vão a manifestações de rua na Avenida Paulista ou na Praia de Copacabana – estes, inclusive, podem até pleitear um certificado de “fascista” junto ao STF. Os negros são de esquerda, os brancos são de direita. São de esquerda a abóbora orgânica, as multinacionais que acham o Brasil incapaz de cuidar da Amazônia e o futebol feminino.
São de direita os pagadores de imposto, os garimpeiros e os motoboys que não querem carteira assinada. As “mulheres” são de esquerda. Os “homens” são de direita. As ciências humanas são de esquerda. As ciências exatas são de direita. O Nordeste e a Polícia Federal são de esquerda. O Sul e a PM de São Paulo são de direita, com viés de “extrema direita”. Há, enfim, as balas perdidas. O ex-governador João Doria, por exemplo, é de esquerda.
É preciso estar atento, também, às variações sobre um mesmo tema. Um caso típico, aí, é o da vacina, hoje um dos assuntos mais apaixonantes do confronto ideológico através do mundo. A vacina está sendo “ressignificada”, como diria Janja; pode ser de esquerda ou de direita, conforme a doença. Preste atenção para não confundir uma com a outra, pois escolher o lado errado da contradição histórica, nesse caso, pode lhe custar um inquérito na Polícia Federal.
Se a vacina é contra a Covid, pode cravar, tranquilo – ela é de esquerda. Já a vacina da dengue, que o governo Lula não consegue aplicar, é de direita. No mais, em caso de dúvida, consulte um jornalista – como a OAB aconselha que se consulte sempre um advogado. Com certeza ele lhe mostrará a escolha correta.
Por J.R.Guzzo é jornalista. Começou sua carreira como repórter em 1961, na Última Hora de São Paulo, passou cinco anos depois para o Jornal da Tarde e foi um dos integrantes da equipe fundadora da revista Veja, em 1968. Foi correspondente em Paris e Nova York, cobriu a guerra do Vietnã e esteve na visita pioneira do presidente Richard Nixon à China, em 1972. Foi diretor de redação de Veja durante quinze anos, a partir de 1976. Nos últimos anos trabalhou como colunista em Veja e Exame.