Opinião – Invasões de terra, pacotes legais e o verdadeiro problema

Não espero que uma política de Estado, fundamentada no bem estar social, que vem desde à década de 30, seja alterada com um artigo. Escreve André Pirajá.

06/05/2024 06:34

“Se o verdadeiro problema não for enfrentado, quem pagará pode ser eu, ou você!”

Abril Vermelho do MST deixa produtores rurais apreensivos. Em resposta, Abril Amarelo do Invasão Zero promete coibir invasões| Foto: Raquel Matos/MST

Estamos vivenciando no Brasil uma das maiores batalhas acerca do direito de propriedade, que influenciará diretamente a produção de alimentos no país. Mas isso não poderia ser diferente, afinal, nossa Constituição Federal prevê a possibilidade de desapropriação de terras para fins de reforma agrária quando não cumprida a sua função social.

Desde longa data, mas de forma acentuada na campanha eleitoral do atual governo até a edição do recente Decreto 11.995/2024, que cria o programa “Terra da Gente”, permitindo que o governo federal intensifique a aquisição de terras para reforma agrária, o Brasil vive a celeuma da reforma agrária. Essa algazarra decorre da completa ausência de seriedade de grande parte da classe política do país em tratar o tema.

Como poderia ser séria uma política de aquisição de terras onde parte do valor a ser pago é realizado por meio de Títulos da Dívida Agrária (TDA)? Mas estranho seria o Estado brasileiro usar dinheiro, já que a União, estados e municípios, quando condenados judicialmente, realizam o “pagamento” por meio de precatórios (“promessa de pagamento”) e, quem sabe um dia, o cidadão recebe.

A primeira pergunta que fica é: haveria necessidade de aquisição de novas terras? Até 2019 o número de famílias assentadas era de 1.364.057, distribuídos em 88 milhões de hectares. Até 2015, nos projetos de reforma agrária, existiam 21 milhões de hectares ainda ociosos. Já as terras indígenas, são 117 milhões de hectares, sendo que dos 900 mil indígenas do país, 1/3 vive nas cidades.

Olhando os dados e a forma pela qual as terras estão distribuídas, seria pouco provável que alguém concordasse com novas demarcações ou aquisições de terras. Porém, o art. 2º da Lei 4.504/1964, que criou o Estatuto da Terra e supostamente justifica o recente decreto, dispõe que “é assegurado a todos a oportunidade de acesso à propriedade da terra, condicionada pela sua função social”. Ora, se todos têm a oportunidade de acesso à propriedade da terra, compete ao Estado brasileiro garantir a transferência de propriedade daqueles que não cumprem a função social para alguém que irá cumprir. E é aqui que reside o verdadeiro problema.

No Brasil, conforme dispõe nossa Constituição Federal, a propriedade privada está condicionada ao cumprimento da função social. E isso não está previsto em um capítulo da reforma agrária ou terras indígenas, mas no próprio art. 5º que dispõe: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”.

Como é possível que duas afirmações contraditórias possam ser aceitas como corretas? Veja que o artigo 5º garante a propriedade, mas logo no inciso XXIII ele condiciona esse mesmo direito à função social. Ainda, logo no inciso abaixo, ele expõe a possibilidade de extinção deste direito por meio da desapropriação, nos casos em que for decretada utilidade pública ou interesse social (inciso XXIV).

Dos seguintes fatos e fundamentos jurídicos, acredito que não existe direito de propriedade no Brasil. Afinal, somente existe um direito se dele não decorrer qualquer condição. E o pior, além das condicionantes da função social, toda e qualquer propriedade no Brasil está sujeita aos interesses e utilidades do Estado brasileiro, transformando todos os proprietários em potenciais vítimas de qualquer suposta política social momentânea.

Então qual seria o verdadeiro problema do país? Discussões sobre invasões de terras e expansão de demarcação de terras indígenas são a cortina de fumaça necessária para manter os interesses de cada bloco político trabalhando – quem sabe até se reelegendo. Porém, o setor produtor de alimentos, o mais prejudicado nessa discussão, continuará a sofrer as consequências da não solução do problema, e as invasões de terra continuarão a ser usadas como moeda de troca das políticas de governo a serem implementadas.

Dizer que o problema real do direto de propriedade é invasão de terras, é esquecer que o próprio Superior Tribunal de Justiça, quando do julgamento da Intervenção Federal 92 – MT, decidiu que: “De um lado, o direito à vida, à liberdade, à inviolabilidade domiciliar e à própria dignidade da pessoa humana, princípio fundamental da República Federativa do Brasil. De outro, o direito à propriedade”.

Ou no caso da Intervenção Federal 111 – PR, onde o Superior Tribunal de Justiça entendeu que “o cumprimento da ordem poderia provocar conflito social e danos muito mais graves do que o prejuízo do particular que perdeu a posse”, afinal, já que o imóvel estava ocupado, a solução sugerida pelo ministro do STJ, uma vez que a propriedade invadida não era improdutiva (para permitir a desapropriação para reforma agrária) nem atendia aos requisitos da Lei 4.132/1962 (para a desapropriação por interesse social), seria a desapropriação indireta.

Caminhando para o final, precisamos recordar outro julgamento do Superior Tribunal de Justiça, o Habeas Corpus 5.574/SP, que reconheceu que o “movimento popular visando a implantar a reforma agrária não caracteriza crime contra o Patrimônio. Configura direito coletivo, expressão da cidadania, visando a implantar programa constante de Constituição da República. A pressão popular é própria do Estado de Direito Democrático”.

Não espero que uma política de Estado, fundamentada no bem estar social, que vem desde à década de 30, seja alterada com um artigo, já que grande parte da sociedade, mesmo que não saiba, flerta com esse welfarestat a moda brasileira, o objetivo é compreender que, no final das contas, se o verdadeiro problema não for enfrentado, quem pagará por toda essa algazarra um dia pode ser eu, ou você!

 

 

 

 

Por André Pirajá, advogado e produtor rural, é fundador do Movimento Produtores Rurais pela Liberdade.

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