Lula, se agir bem (…) terá a chance de mostrar que é capaz de governar para todos os brasileiros. Escreve Diogo Schelp.
08/05/2024 06:09
“Ele não estará ajudando Leite, mas os gaúchos que perderam quase tudo”
Em sua segunda visita para supervisionar a situação das enchentes que devastaram o Rio Grande do Sul, o presidente Lula encontrou-se neste domingo (5) com o governador gaúcho Eduardo Leite (PSDB), acompanhado dos presidentes do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD), e da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP), além de alguns ministros, como Fernando Haddad, da Fazenda. Leite fez apelos por um plano de reconstrução do estado e por uma flexibilização nas regras que limitam aumentos nos gastos de um ano para o outro, sem a qual ele fica impedido de aplicar os recursos extras que vier a receber. De quebra, deixou uma mensagem para Lula.
Eis o trecho da fala de Leite que interessa: “O Rio Grande do Sul já é um estado que tem dificuldade para operar na normalidade por conta das restrições fiscais. O problema que a gente tem de dívidas contraídas ao longo de tempos aqui no estado já nos dificulta a ação em tempos de normalidade. Em tempos de excepcionalidade não vamos conseguir dar resposta, não vamos ter fôlego para responder se a gente não encaminhar determinadas soluções que são de conhecimento já prévio de todos na restrição financeira, de um orçamento estadual já pressionado com dívidas, com estoques de problemas anteriores, déficits, enfim. Nas regras fiscais, como eu disse, se colocar 10 bilhões [de reais] na nossa conta, eu só posso gastar o limite do ano passado mais a inflação do período. Eu não consigo fazer a despesa, eu vou ter restrições, vão exigir excepcionalidades. Vamos ter que trabalhar nessa lógica”.
Tomando cuidado para não personalizar demais a mensagem, em respeito à presença de Lula — de quem, afinal, depende para conseguir os recursos emergenciais para o estado —, Leite demonstrou o preço que um governante e, consequentemente, a população pagam quando há um descontrole nos gastos públicos em tempos de normalidade. O problema pode não estourar na mão de quem se joga na gastança, mas em algum momento ele aparece, com efeitos nocivos inclusive para a capacidade de fazer frente a situações de emergência, como são, de fato, as cada vez mais frequentes enchentes no Rio Grande do Sul.
Em meio à atual tragédia provocada pelas chuvas, o governo gaúcho vem sendo acusado de não ter levado a sério os riscos climáticos e de não ter adotado as medidas necessárias para mitigar enchentes como as que ocorreram em pelo menos quatro ocasiões nos últimos meses. Leite, que nunca negou as mudanças climáticas (ao contrário do que alguns parlamentares de esquerda têm afirmado), demonstrou que existe um limite naquilo que um gestor público é capaz de fazer. Esse limite é o orçamento. Se você tem um estado endividado ou que sistematicamente gasta mais do que arrecada, no momento da emergência ou da necessidade de investimentos vultosos em infraestrutura para se adaptar a uma nova realidade climática, as soluções acabam proteladas ou ocorrem de maneira incompleta.
A situação financeira do Rio Grande do Sul é difícil em grande parte por causa do espírito gastador de governadores petistas que comandaram o estado no passado. Essa era a mensagem velada que Leite deu a Lula: “…dívidas contraídas ao longo de tempos aqui no estado…”. Esse “ao longo de tempos” inclui os governos do PT.
O endividamento do Rio Grande do Sul vem se aprofundando há muitas décadas, desde antes do governo de Leonel Brizola, no início dos anos 60. Mas a dívida gaúcha começou a sair do controle mesmo no período da ditadura militar, quando os estados foram estimulados por Brasília a buscar empréstimos externos para bancar o “milagre econômico”.
Ao longo dos anos 80 e 90, a situação se tornou insustentável. No final da década de 90, no governo de Antônio Britto, tentou-se fazer um acordo com a União, que assumiu a dívida. O Rio Grande do Sul comprometeu-se a pagar quase 9 bilhões de reais em parcelas a perder de vista, mas não cumpriu a contrapartida de privatizar seu banco estatal. Mesmo assim, o acordo foi fechado.
Mas eis que assumiu o governo do petista Olívio Dutra e o acordo começou a ir por água abaixo. O novo governador entrou na justiça contra o acordo. Além disso, o índice que era usado para a correção da dívida disparou. Justo quando entrou um novo governador, Germano Rigotto, o estado enfrentou secas que impactaram na agricultura. A arrecadação desabou.
Em 2006, elegeu-se a economista Yeda Crusius, do PSDB, que começou a ajustar as contas do estado implantando a ideia do déficit zero. Naquela época, isso foi considerado quase revolucionário. Imagine, tentar gastar menos do que se arrecada. No começo deu certo, e o Rio Grande do Sul chegou a registrar superávit em alguns anos.
Mas um novo governo do PT, dessa vez de Tarso Genro, assumiu o Palácio Piratini. Genro acabou com a política do déficit zero e aumentou os gastos públicos, promovendo, por exemplo, reajustes de salários para os servidores. Desde então, os governos gaúchos têm lutado para sanar as contas do estado e contornar o problema da dívida.
Quando tomou posse pela primeira vez, em 2020, uma das primeiras medidas de Eduardo Leite foi retomar as negociações com o Tesouro Nacional. Ele está fazendo um bom trabalho equilibrando as contas públicas, que apresentaram um resultado primário de 2,4 bilhões no ano passado. Mas, depois de décadas de gestões desastrosas, o estado ainda tem uma dívida monstruosa com a União, da ordem de 90 bilhões de reais.
O Rio Grande do Sul necessita do apoio do governo federal para se reerguer da tragédia das enchentes. Diferenças partidárias precisam ser deixadas de lado. Lula, se agir bem, com solidariedade ao povo gaúcho e se esforçando para afastar os entraves burocráticos e fiscais para que os investimentos sejam feitos no estado, terá a chance de mostrar que é capaz de governar para todos os brasileiros. Ele não estará ajudando Leite, que tenta se viabilizar como um dos seus adversários na eleição presidencial de 2026, mas os gaúchos que perderam quase tudo, inclusive seu meio de subsistência, nas enchentes.
O governador, pela cautela em não mencionar os antecessores petistas, também tentou se esquivar da partidarização. A mensagem é técnica: o governo que poupa em tempos normais, de vacas gordas, tem recursos para aplicar em tempos difíceis, de penúria. Vale para o Rio Grande do Sul, vale para o Brasil.
Por Diogo Schelp, jornalista, foi editor executivo da revista Veja, onde trabalhou durante 18 anos. Fez reportagens em quase duas dezenas de países e é coautor dos livros “Correspondente de Guerra” (Editora Contexto), finalista do Prêmio Jabuti 2017, e “No Teto do Mundo” (Editora Leya).