É imperioso que toda política pública esteja sanitariamente orientada. Mas tudo isso é muito mais complicado que fazer subir impostos sobre pão de forma. Escreve Luiz Eduardo R. de Carvalho.
13/05/2024 06:01
“Cientistas super-heróis, quando nos distraem com soluções mágicas para problemas difíceis, instauram o hiper-real”
Até o Imperial College de Londres caiu na pegadinha. Postou um comunicado de imprensa que começa assim: “Tributar alimentos não saudáveis ajuda a reduzir a obesidade, diz estudo global. O México está a liderar o caminho na implementação de impostos sobre opções alimentares não saudáveis, ajudando com sucesso a combater a obesidade e problemas de saúde relacionados”. Mas isso não é fato, é fake. Uma publicaçãoda CONSCIENHEALTH, uma ONG de Pittsburg que atua na questão da obesidade e Ciência – e defende prevenção e tratamento baseados em evidência – denuncia que “a afirmação de que ‘o México está na vanguarda’ é lamentável porque é uma meia verdade. Há uma década, o México liderou a implementação de impostos sobre ‘junk food’. No entanto, a afirmação de ‘combater a obesidade e problemas de saúde relacionados’ claramente não é verdadeira. As taxas de obesidade no México continuam a subir, assim como o fardo das doenças crônicas daí resultantes”. E conclui: “Gostaríamos que fosse verdade. Mas desejar não significa que seja assim”.
O que, sim, é verdade, é que as pessoas podem engordar comendo apenas alimentos in natura, só orgânicos e bio, só funcionais, só diet, light ou zero, só integrais, só alimentos imaginados como saudáveis. O problema é que a questão não é apenas compreender se salsichas são saudáveis ou não. Mas em compreender o que é que leva alguém a comer salsichas em vez de bifinhos ou filés de frango ou um hamburguer plant based, pingando sangue fake de beterraba.
Proibir a venda de fatias de pizza nas escolas, obrigar a beber mate-limão em vez de refrigerante, mobilizar deputados para impor uma megatributação de industrializados –como se por cima do frescor do cacho de uvas in natura não houvesse aspersão do conservante metabissulfito; como se água no coco não fosse uma bebida ultra-açucarada pela própria natureza – tudo não passa de solução ultraprocessadamente simplória, de cabecinhas ultraprocessadas, que só agravarão nossos graves problemas alimentares.
A tributação seletiva contra industrializados poderá reduzir o consumo de alguns tipos de alimentos industrializados. Essa conclusão traz verdades. Mas nada disso significa que, aumentando o preço das salsichas dos mais pobres, estes ficarão livres da fome, da obesidade, da hipertensão, do diabetes tipo 2, ou livres das salsichas mais caras. Não há nenhuma prova disso. Não faltam fáceis, fartas e bem fornidas, vigorosas mesmo, evidências do contrário.
Essa campanha contra alimentos industrializados não traz nenhuma esperança de que teremos menos obesidade e doenças crônicas, embora amparada em fatos concretos: a rotulagem é mesmo muito ruim; a propaganda não raro é enganosa; muitos ingredientes miserabilizam a qualidade para alinhar preços com o miserável poder de compra do brasileiro, muitos aditivos poderiam ser evitados, agrotóxicos poderiam ter melhor controle e uso parcimonioso, a Anvisa poderia ser melhor qualificada, o Ministério da Saúde poderia formular medidas governamentais com base científica, em vez de impulsionar guias ufológicos.
Promoção da saúde é cuidar que, em toda e qualquer medida governamental, se considere e respeite as variáveis relacionadas com a saúde coletiva. É imperioso que toda política pública esteja sanitariamente orientada. Mas tudo isso é muito mais complicado, mais desafiador, que loucurinhas de fazer subir impostos sobre pão de forma, bolachas, paçoquinha e hambúrguer.
Embaralhar dados de equivocadas estatísticas epidemiológicas com fofocas sobre subcelebridades e coluna astrológica nos jornais pode ter mercado de leitores, mas nos ocupa, nos distrai, nos arrasta para fora da busca de soluções inteligentes e inovadoras para nossas velhas questões alimentares.
Soluções simples para problemas complexos são usuais em filmes hollywoodianos de super-heróis – para entretenimento. Cientistas super-heróis, quando nos distraem com soluções mágicas para problemas difíceis, instauram o hiper-real. Distraídos, nos sentiremos mais felizes, seguros e participativos, mas com certeza prosseguiremos bem gordinhos e cada vez mais diabéticos.
Por Luiz Eduardo R. de Carvalho é professor na UFRJ.