Sob o poder dos jacobinos, muita gente literalmente perdeu a cabeça acusada de ser inimiga da revolução e por disseminar desinformação. Ou o que os donos do poder definiam. Escreve Leonardo Coutinho.
14/05/2024 06:23
“Para combater a mentira ou as fake news não há outro antídoto além da busca incessante pela verdade”
Parece fake news, mas quem passa o dia inteiro dizendo que isso e aquilo é fake news não faz a menor ideia, na maioria dos casos, do que vem a ser fake news. Já na largada explico: o conceito é muito simples. A mentira pressupõe uma intenção. Ou seja, quem mente quer enganar. Logo, as fake news, pode-se dizer, são atos intencionais e com objetivo. Quem mente quer mentir. Inventa algo e encontra seus canais e seus amplificadores para disseminar sua desinformação.
Nem tudo que está errado, incompleto ou tendencioso é fake news. Todo dia, toda hora, as autoridades e imprensa deslizam. De boa-fé – sim, de boa-fé –, escorregam em um número, uma informação qualquer. Cometem erros. Erros não são falsificações ou mentiras.
Erros são erros. Quando eles acontecem, quem errou tem de corrigir e bola para frente. Erros de informação têm consequências? Sim, claro que têm. Mas eles não são crimes. Ou pelo menos não deveriam ser tratados como tal. Sobretudo quando nem chegam a ser erros, mas apenas uma parte da história que ainda está em evolução.
O termo se tornou popular graças ao ex-presidente Donald Trump, que em suas coletivas e eventos não se fazia de rogado em chamar alguns dos jornalistas presentes de mentirosos.
A mentira, volto a dizer, tem a intenção de enganar. Mas, para os políticos, a mentira tem uma dupla função. A primordial delas é o meio de vida. Mentir faz parte do trabalho da maioria deles (ou seria todos eles?). Mentem, mentem e mentem. Quando são pilhados ou incomodados, recorrem mais uma vez à mentira, mas como escudo. Acusar aqueles que apontam suas malversações de mentirosos é algo historicamente comum para eles.
No fim do século 18, a escritora inglesa Mary Wollstonecraft (1759-1797) – que era uma entusiasta da Revolução Francesa e passapanista para a violência descomunal jacobina, que mandou cerca de 10 mil pessoas para a guilhotina – escreveu que “o povo distinguirá entre os amigos da revolução, aqueles que a sustentam às custas de sua própria vida para que ela triunfe ‘apesar’ dos inimigos do povo”.
Os “inimigos do povo”, já naquele longínquo ano de 1793, eram desqualificados, entre várias coisas, sob a acusação de disseminar fausses nouvelles. Ou, como passamos a definir em inglês, fake news. Sob o poder dos jacobinos, muita gente literalmente perdeu a cabeça acusada de ser inimiga da revolução e por disseminar desinformação. Ou o que os donos do poder definiam como desinformação. Os séculos passaram e nada mudou. Em regimes de esquerda ou de direita, a desqualificação dos críticos sob a acusação de mentir para desacreditar ou desestabilizar o ditador de turno foi um método em comum.
Como um pequeno manual de palavras aceitáveis fortalece o autoritarismo
Criminalizar críticos por opinião é coisa de ditadura. Então, por isso, para higienizar o negócio resolveu-se invocar a nobreza do “combate à desinformação”.
Dando um passo além do que vem a ser mentira, ou fake news, como ato deliberado: como chamar de mentira ou de fake aquilo em que uma pessoa acredita e que expressa com fervor, pois está segura de que está dizendo a verdade ou reportando a realidade?
Parece muito abstrato e, portanto, impossível de se resolver dentro de algo que ganhou status de “ciência exata” para os definidores estatais do que é verdade ou não. Mas, justamente por ser abstrato, não é minimamente razoável querer criminalizar alguém por acreditar e difundir algo – ainda que este algo seja absolutamente idiota, anticientífico ou até mesmo religioso.
O termo fake news virou uma espécie de coringa para tudo. Banal, mas perigoso. Além de servir para perseguir, desqualificar e segregar, ele tem suprimido o debate, o direito e dever de duvidar, a pluralidade e até mesmo o prazer de poder escutar estupidezes e rir muito delas.
Quem tem real apreço pela democracia, liberdade e valores fundamentais que foram construídos a duras penas ao longo de nosso processo civilizatório não pode se deixar enganar por governos que se autoproclamam capazes de definir o que é verdade ou não. A verdade ou a mentira sob a administração estatal não são mais luz e sombra na complexa existência humana. Passam a ser instrumento político.
Como sociedade, temos o dever de renegar a mentira e de impedir que, na condição de moeda corrente na sociedade, ela coloque em xeque os nossos melhores valores. Para combater a mentira ou as fake news não há outro antídoto além da busca incessante pela verdade. Mas essa busca não se dá por meio da censura e/ou da perseguição. Os confrontos de ideias, a pesquisa, a ciência e a tolerância ao diferente são alguns dos elementos que estão sendo abandonados pela rendição ao totalitarismo.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos
Por Leonardo Coutinho, jornlista escreve semanalmente no Washington, D.C