Opinião – Controle interno “para inglês ver”

A falta de punição dos agentes públicos que praticam atos ilegais, cria incentivos negativos, passando sinais confusos à sociedade e fragilizando as instituições. Escreve Angelo Silva de Oliveira.

03/06/2024 05:40

“O sentido dessa expressão pode ser verificado no âmbito da Administração Pública”

Reprodução.

De acordo com o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, a expressão “para inglês ver” pode ser definida como “ação ou efeito de aparência, sem efetividade”. Tal expressão teria surgido no Brasil Imperial (1822 – 1889), período em que as nações europeias, em especial a Inglaterra, por intermédio de acordos e tratados, pressionava os agentes públicos brasileiros para o fim do tráfico de escravos. Nesse contexto, as autoridades da época passaram a editar leis e normas “para inglês ver”, dissimulando, ou seja, dizendo por meio do ordenamento uma coisa e, na prática, fazendo outra.

Passados dois séculos, lamentavelmente, o sentido dessa expressão pode ser verificado no âmbito da Administração Pública Municipal do Estado de Mato Grosso, quando o assunto é Controle Interno. Embora a efetiva implantação dos Sistemas de Controle Interno seja uma exigência expressa nos artigos 31, 70 e 74 da Constituição Federal de 1988 e nos artigos 191 e 206 da Constituição do Estado de Mato Grosso, condição indispensável para todas as Leis Orgânicas dos 142 municípios dessa unidade da federação, o que se verifica são leis e normas editadas com base no “CTRL + C, CTRL + V”, inovando ao serem elaboradas “para o TCE ver” em substituição ao histórico “para inglês ver”.

Essa triste constatação pode ser verificada a partir da leitura da Resolução nº 01/2007, publicada pelo Tribunal de Contas do Estado de Mato Grosso – TCE/MT, que aprovou o “Guia de Implantação do Sistema de Controle Interno na Administração Pública” e determina aos poderes e órgãos do Estado e dos municípios de Mato Grosso, que ainda não tivessem implantado o sistema de controle interno, que o fizessem até 31/12/2007 e que o Manual de Rotinas Internas e Procedimentos de Controle fosse concluído até 2011. Na opinião do autor, a Resolução 01/2007 do TCE/MT repercutiu entre os gestores municipais, em sua maioria, como se fosse o tratado Brasil-Inglaterra, que na época proibia o tráfico de escravos, demandando a edição de leis e normas “para inglês ver” e, no caso contemporâneo, “para o TCE ver”, aparentando atender às determinações constitucionais, fragilizando os sistemas de controle interno, criando um ambiente propício à proliferação de atos ilegais e à ineficiência da administração pública.

O descaso e a inobediência aos ditames constitucionais na perspectiva da efetividade do Sistema de Controle Interno tornam-se cristalinos quando consideramos o prazo para efetiva implantação dos Sistemas de Controle Interno (SCI), estabelecido pela Resolução 01/2007 do TCE/MT, expirado no ano de 2011. Transcorridos 17 anos, ainda existem municípios em Mato Grosso com inexistência ou precária atuação do SCI.

Neste cenário, a falta de punição ou responsabilização (impunidade) dos agentes públicos que praticam atos ilegais, ou dissimulam “para o TCE ver”, cria incentivos negativos, passando sinais confusos à sociedade e fragilizando as instituições do Estado.

Em meio a uma procrastinação generalizada, estimulada pela impunidade, vale ressaltar que o Tribunal de Contas do Estado de Mato Grosso editou, em 2014, uma nova resolução normativa (Resolução nº 26/2014) que estabeleceu requisitos mínimos para estruturação e funcionamento dos Sistemas de Controle Interno (SCI). Determinou aos prefeitos municipais que, na implementação do Sistema de Controle Interno do Poder Executivo, fossem atendidos 100% dos requisitos prescritos no Anexo III desta Resolução até dezembro de 2017. Esses requisitos deveriam ser considerados para efeito da apreciação das respectivas contas anuais.

A partir de 2019, diante do flagrante descumprimento dos mandamentos constitucionais, o Controle Social, representado pela Associação dos Auditores e Controladores Internos dos Municípios de Mato Grosso (Audicom-MT), viu-se obrigado a intervir em apoio aos órgãos de Controle Externo, passando a ingressar com Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI) junto ao Poder Judiciário contra municípios que, infelizmente, insistiram ou insistem em manter órgãos de controle interno em condições precárias, desprovidos de condições de exercer efetivamente as atribuições constitucionais, em especial a de fiscalização das contas públicas.

Assim sendo, espera-se a declaração de inconstitucionalidade de leis maliciosas criadas à base de “CTRL + C, CTRL + V”, que ações por crimes de responsabilidade por negarem o cumprimento de leis federais, nos termos do Art. 1º, inciso XIV, do Decreto-Lei 201/1967, que a inelegibilidade e outras penalidades decorrentes da reprovação de contas no TCE/MT, gerem incentivos positivos aos prefeitos de Mato Grosso para que se comprometam com a efetiva implantação e operacionalização dos Sistemas de Controle Interno, dotando a Administração Pública Municipal de mecanismos que assegurem, entre outros aspectos, o cumprimento das exigências legais, a proteção do patrimônio e a otimização na aplicação dos recursos públicos, garantindo maior tranquilidade aos gestores e melhores resultados à sociedade.

Confira aqui a relação de ações contra a precarização do Sistema de Controle Interno nos municípios de Mato Grosso:

1. ADI de Rondonópolis. Disponível em: https://clickjudapp.tjmt.jus.br/consulta-processual/1010030-36.2019.8.11.0000/147313

2. Segunda ADI contra Rondonópolis após a gestão reeditar a lei declarada inconstitucional na primeira ADI. https://clickjudapp.tjmt.jus.br/consulta-processual/1018096-68.2020.8.11.0000/2262920

3. ADI de Cáceres. Disponível em: https://clickjudapp.tjmt.jus.br/consulta-processual/1014296-32.2020.8.11.0000/2090892

4. ADI de Várzea Grande. Decisão que o STF anulou por contrariar tese de repercussão geral 1010. TJMT vai ter que anular o primeiro acórdão e julgar novamente a ADI de VG. Disponível em: https://clickjudapp.tjmt.jus.br/consulta-processual/1023402-18.2020.8.11.0000/2594899

5. ADI de Paranatinga. Disponível em: https://clickjudapp.tjmt.jus.br/consulta-processual/1003758-21.2022.8.11.0000/4215416

6. ADI de Feliz Natal. Disponível em: https://clickjudapp.tjmt.jus.br/consulta-processual/1020265-57.2022.8.11.0000/5282883

7. ADI de Planalto da Serra. Disponível em: https://clickjudapp.tjmt.jus.br/consulta-processual/1023590-40.2022.8.11.0000/5546387

8. ADI de Cuiabá. Disponível em: https://clickjudapp.tjmt.jus.br/consulta-processual/1030164-45.2023.8.11.0000/8219407

9. ADI de Campo Novo do Parecis. Disponível em: https://clickjudapp.tjmt.jus.br/consulta-processual/1030178-29.2023.8.11.0000/8219413

10. Amicus curiae na Ação Popular contra Cuiabá, em parceria com o Observatório Social de Mato Grosso. Ação inicial de autoria da Vereadora Edna Sampaio. Ação transformada em Recurso Extraordinário (RE). Está em tramitação no TJMT. Disponível em: https://clickjudapp.tjmt.jus.br/consulta-processual/1009457-64.2022.8.11.0041/3156606

11. Recurso Extraordinário (RE) no STF contra Várzea Grande. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6667997

12. Recurso Extraordinário (RE) no STF contra Feliz Natal. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6795978

 

 

 

 

 

Por Angelo Silva de Oliveira é controlador interno da Prefeitura de Rondonópolis/MT.

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