Em meio a essa batalha pela narrativa, uma coisa é clara: a tentativa de monopolizar a narrativa e silenciar vozes discordantes não é o caminho. Escreve Lilian Carvalho
05/06/2024 08:44
“Numa democracia, o debate e a diversidade de opiniões são não apenas necessários, mas vitais”
A era digital nos trouxe inúmeras maravilhas: a capacidade de nos conectarmos instantaneamente com qualquer pessoa ao redor do globo, o acesso a uma quantidade inimaginável de informações com apenas alguns cliques e, claro, a democratização da produção de conteúdo. No entanto, como toda moeda tem dois lados, também fomos apresentados ao fenômeno das “fake news”, ou seja, informações fabricadas que imitam conteúdo jornalístico em forma, mas não em processo organizacional ou intenção. Mas aqui, meus caros leitores, permitam-me questionar: quem realmente tem o monopólio de emitir opiniões e divulgar fatos?
Vivemos em tempos em que o medo palpável dos jornalistas tradicionais se materializa na forma de uma cruzada moralista contra as fake news. A ironia, porém, reside no fato de que os próprios veículos tradicionais não estão imunes a propagá-las. Existe uma diferença entre “fake news” e “false news”, sendo que neste segundo caso as informações são divulgadas por jornalistas tradicionais por incompetência ou irresponsabilidade.
Como é conveniente assumir má-fé dos nascidos digitais e boa-fé ou mero erro dos jornais convencionais! Talvez essa sanha moralista dos jornalistas seja uma resposta às tiragens cada vez menores dos veículos tradicionais. Por exemplo, o jornal O Estado de S. Paulo, de acordo com ele próprio, tinha uma tiragem mensal de 239 mil exemplares em 2018. Em comparação, o veículo conservador Brasil Paralelo possui 377 mil assinantes (57% maior que o Estadão).
A disputa pela narrativa e pelo direito de se divulgar informações se tornou um campo minado, onde até mesmo o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky é criticado por sua “espetacularização” na defesa de seu país. Mas pergunto: não seria essa apenas uma adaptação aos novos tempos, onde as redes sociais se tornaram a praça pública da discussão global? Por que Zelensky deveria convocar coletivas de imprensa e utilizar jornalistas para amplificar sua mensagem, quando ele tem nas redes sociais uma plataforma mais poderosa, e alguns diriam, mais eficaz, de defender seu povo e seu país?
Parece que a má-vontade com o conteúdo criado pelos indivíduos, sejam eles presidentes de Estado, cidadãos comuns ou veículos de mídia digital, é generalizada. A última polêmica desta versão digital do programa da Márcia Goldschmidt é a jornalista Daniela Lima, da Globonews, e as supostas “fake news” sobre as enchentes no Rio Grande do Sul. O embate entre Daniela Lima, a Globonews e as redes sociais, principalmente o Twitter, se refere às críticas à inação do Estado durante as enchentes, na qual ela afirma “Eles usam vídeos falsos, descontextualizados, para dizer que quem está salvando o Rio Grande do Sul no braço são os voluntários, os civis. Essa ideia é para dizer que o Estado é lento e preguiçoso”. Quando um jornalista se transforma em defensor do governo, onde fica a imparcialidade tão pregada pela mídia tradicional?
De qualquer forma, Daniela Lima foi citada mais de 40 mil vezes no Instagram, Twitter/X e Facebook. E, aparentemente, seu ataque em relação às fake news no que diz respeito às enchentes no Sul não conta com apoio dos internautas: só 32% das menções relacionadas ao nome dela são positivas, puxadas principalmente por políticos de esquerda, como Gleisi Hoffmann e Jandira Feghali.
Este episódio ilustra perfeitamente a complexidade da situação: de um lado, o governo e os jornalistas de veículos tradicionais acreditam estar combatendo mentiras online que ameaçam a democracia. Do outro, cidadãos e criadores de conteúdo digital veem uma tentativa de cercear a liberdade de expressão e a manifestação legítima de opinião. Uma anedota interessante é que a própria jornalista Daniela Lima, quando ainda estava na CNN, postou que a plataforma Twitter estava a impedindo de postar um conteúdo sobre a PL 2630, conhecida como PL das fake news, que visa regular a circulação de notícias falsas na internet. Só que a informação era falsa, naquele dia houve uma pane na plataforma Twitter e milhares de usuários não conseguiram postar nenhum conteúdo. Deveria Daniela Lima ser investigada e punida pela divulgação de fake news? Ah, a ironia!
A tentativa de silenciar opiniões sob a égide de combater fake news pode levar a consequências perigosas, criando um ambiente cada vez mais polarizado e cerceando direitos fundamentais. O ofício Nº 119/2024/GAB/SE/SECOM/PR, que pede a investigação de contas sobre as instituições estatais, é um exemplo preocupante dessa tendência.
Estamos, portanto, diante de um dilema: como equilibrar a luta legítima contra a desinformação sem pisar no direito fundamental à opinião? Será que estamos caminhando para uma censura digital, onde a tentativa de controlar a narrativa apenas esconde a verdade? E cidadãos comuns em todo o país serão processados por opinar sobre seus governantes, em qualquer esfera? Teremos listas de indivíduos críticos ao governo, uma forma de macarthismo digital?
Em meio a essa batalha pela narrativa, uma coisa é clara: a tentativa de monopolizar a narrativa e silenciar vozes discordantes não é o caminho. Macarthismo não é a solução. Talvez seja hora de reconhecermos que, na era digital, a narrativa é multifacetada e o direito à opinião deve ser defendido, mesmo que isso signifique conviver com opiniões que não gostamos. Afinal, numa democracia, o debate e a diversidade de opiniões são não apenas necessários, mas vitais.
Por Lilian Carvalho é PhD em Marketing e coordenadora do Centro de Estudos em Marketing Digital da FGV/EAESP. É consultora de marketing digital e fundadora da Método Lumière.