O “Advogadoquistão”, que se transformou o Brasil, é o resultado de uma série de fatores combinados: burocracia, violência endêmica, corrupção sistêmica e caos. Escreve Leonardo Coutinho.
17/06/2024 14:05
“os advogados são os culpados de nossa tragédia? Não.”
Nenhum lugar do mundo produz mais advogados que o Brasil. No último ano foram, pelo menos, uns 100 mil bacharéis que saíram “novinhos em folha” dos 1.800 cursos oferecidos no país.
Essa multidão, capaz de lotar o Maracanã, se juntou aos quase 1,4 milhão de advogados, que atuam plenamente. Além de outros 2,6 milhões que têm o diploma, mas não estão registrados na OAB – um pessoal que faz de tudo, desde motorista de aplicativo, a ministro da Suprema Corte.
Por falar em Uber, a empresa tem 721 mil motoristas cadastrados no aplicativo no Brasil. Há mais advogados com carteirinha da OAB, exatamente o dobro, que o total de condutores em atividade por meio da plataforma. Mas essa ainda não é a melhor comparação.
A quantidade de advogados no Brasil (leia-se advogado aquele que tem autorização para trabalhar na função) é idêntica a de professores da educação básica. E muito em breve, ainda neste ano, deverá ultrapassar, devido a rápida taxa de crescimento da categoria.
Até recentemente, a Índia tinha o maior número absoluto de advogados, mas com a sua população de quase 1,5 bilhão de pessoas, a taxa de advogados indianos per capta não dá para ser comparada à dos brasileiros.
Os indianos formam muitos advogados. Mas a advocacia nem de longe é a carreira que mais recebe novos profissionais todos os anos. Enquanto as escolas de direito da Índia diplomam, em média, 50 mil a 60 mil pessoas por ano, as engenharias colocam no mercado 1,5 milhão de profissionais todos os anos.
Nada contra os advogados, mas o que faz um país desenvolver? Uma indústria que não para de produzir novos advogados, que supera o número de professores em atividade na educação básica, ou um país focado em outro tipo de carreiras capazes de produzir riqueza?
A Índia, apesar de seus problemas superlativos, está decolando. O país foca em matemática e ciências.
É evidente que dos 1,5 milhão de engenheiros formados por ano, nem todos serão absorvidos pelo mercado, ou receberão a educação de elite oferecida por um conjunto de 23 instituições estrategicamente apoiadas pelo governo. Mas há uma clara diretriz para a formação de mão de obra qualificada, não só para erguer a Índia, mas também atuar fora do país.
Nos últimos dias, o presidente Lula deu uma série de declarações conflitantes sobre ciência, tecnologia e inovação. Disse que aspira uma “inteligência artificial sul-sul”, para libertar os países pobres da ganância dos ricos.
Lula pensa em fazer isso com advogados, sociólogos, antropólogos, teatrólogos e o pessoal de economia da Unicamp? Não né…
Além da ideia populista e absurda, não dá para imaginar um governo que, no mesmo dia, atacou os investimentos privados em viagens espaciais, como sendo o símbolo maior da injustiça social. Não se trata de menosprezar as carreiras de ciências humanas, mas elas sequestraram a academia. Não pelo seu aspecto positivo, mas pelo mais pernicioso. Para citar um exemplo apenas: qualquer discussão tem que passar pelas teorias marxistas, como se elas fossem a Pedra Rosetta do universo.
Mas, então, os advogados são os culpados de nossa tragédia? Não. Não mesmo. Eles são uma consequência.
No Advogadoquistão, o curso de Direito deveria se chamar curso de sobrevivência. Os graduados aprendem o mínimo para não ser um idiota como os demais cidadãos. Aqueles que se destacam na atividade deixam para trás a savana, onde os mortais lutam para sobreviver, e, do topo do Olimpo, não só assistem ao espetáculo, como ajudam a definir o roteiro da vida dos demais.
Parece bobagem, mas se, por um lado, a sobreposição do Judiciário aos outros Poderes deu aos advogados uma condição privilegiada na sociedade, a institucionalização do “Advogadoquistão” deu ao Judiciário capacidades superlativas. Trata-se de um processo de retroalimentação em que todos se protegem. Uma elite que virou o sonho de vida de muita gente.
Por Leonardo Coutinho, escreve semanalmente, desde Washington, D.C.