Nenhum juiz tem voto ou é legitimado pelo voto, especialmente os de tribunais superiores. Escreve Deltan Dallagnol.
28/06/2024 16:45
“Dizer que os ministros do Supremo estão legitimados em 100 milhões de votos é uma cortina”
Na semana passada, durante o julgamento da descriminalização do porte da maconha para uso pessoal no Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro Dias Toffoli (sempre ele) nos legou duas grandes pérolas, que serão sempre lembradas como alguns dos momentos mais constrangedores da história do Supremo, em uma longa carreira já marcada por momentos parecidos, como a anulação em série de condenações, provas e processos da operação Lava Jato e a suspensão de multas bilionárias de empresas que confessaram corrupção e firmaram acordos de leniência.
O primeiro momento, que é apenas cômico, é uma daquelas cenas em que lembramos da expressão “rir para não chorar”, quando Toffoli comparou o cafezinho que ele próprio estava tomando com drogas como a maconha e a cocaína. Já o segundo foi muito mais sério: o ministro teve a coragem de dizer que os ministros do Supremo estão legitimados por cerca de 100 milhões de votos: “Se somarem os votos dos presidentes da República […] aos votos dos senadores que nos aprovaram, todos aqui estamos legitimados em cerca de 100 milhões de votos”.
A frase é perigosa porque, além de ser uma mentira, envolve um sincericídio – uma verdade oculta que a pessoa prefere não revelar, mas que acaba sendo exposta sem querer, em um momento de descontração, espontaneidade ou desatenção. Em primeiro lugar, a afirmação é mentirosa porque nenhum juiz tem voto ou é legitimado pelo voto, especialmente os de tribunais superiores, mesmo que sejam indicados pelo presidente da República e confirmados pelo Senado. Se isso fosse verdade, então qualquer brasileiro poderia exigir que, de 4 em 4 anos, fosse feita uma reavaliação dos ministros do Supremo por meio das urnas, como fazemos com vereadores, prefeitos, deputados, senadores e presidentes que buscam a reeleição.
Por meio das eleições periódicas, os cidadãos têm a oportunidade não só de elegerem novos candidatos como de removerem, pelo exercício do voto em outra pessoa, os candidatos que os decepcionaram, que foram acusados de crimes ou que por algum outro motivo não merecem mais a confiança do eleitor. Juízes, especialmente ministros do Supremo, não estão sujeitos a esse tipo de controle democrático justamente porque se confere a eles a independência judicial, para que julguem e decidam os casos diante deles de acordo com sua consciência e com as leis, livres de pressões e interferências externas. Juízes não têm qualquer compromisso com eleitores ou pautas eleitorais, mas apenas com o ofício judicial de aplicar e interpretar a lei. É da aplicação técnica da lei feita pelo Congresso que vem sua legitimidade.
Hoje, obviamente, não podemos votar em ministros do Supremo e removê-los do cargo a cada 4 anos, mas se Toffoli acha que ele e os demais ministros estão legitimados pelo voto, então essa certamente seria uma proposta interessante. Será que Toffoli e os demais ministros do Supremo topam essa ideia? Acredito que não, e mesmo que o Congresso tentasse algo do tipo, alguém duvida que o próprio Supremo fosse meter o bedelho para derrubar a medida, considerando-a inconstitucional? A situação se resume perfeitamente ao velho ditado: “Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come”. Será que não temos que enfrentar o bicho?
O único tipo de controle que existe em relação a juízes do STF é o da crítica pública, externada por cidadãos via redes sociais e também por meio da imprensa, que tem um papel importante de controle social do poder, o qual, infelizmente, tem sido deturpado nos tempos atuais por uma imprensa aliada aos donos do poder, que, em vez de fiscalizar e atuar com vigilância, busca contemporizar e justificar abusos e excessos de autoridades, em troca de cada vez mais acesso aos bastidores do poder. Em relação aos ministros do Supremo, há, especificamente, o Senado, que tem o poder de remover os ministros por meio de um processo de impeachment, medida até hoje negligenciada, mas que resolveria muitos de nossos problemas se exercida corretamente.
Em segundo lugar, a fala de Toffoli carrega um sincericídio a respeito de como os ministros do Supremo realmente se imaginam: como seres supremos, acima de tudo e de todos e até mesmo da Constituição que juraram guardar, proteger e defender. É a confissão de que eles se enxergam como verdadeiramente agem: como políticos de toga. Dizer que os ministros do Supremo estão legitimados em 100 milhões de votos é uma cortina de fumaça para defender todo tipo de abuso judicial dos ministros, além de suas interferências e atropelos nas atribuições, competências e prerrogativas de outros Poderes, como acabou de acontecer no caso do porte de maconha. É nada mais e nada menos do que uma verdadeira carta branca para que os ministros continuem fazendo o que querem e se escondam por trás de uma legitimidade que não têm.
O perigo da fala fica ainda mais óbvio com outra pérola, ainda mais recente, de Toffoli, da última terça (25), quando o ministro disse que o Congresso agora não pode mais proibir e nem criminalizar o uso da maconha. Vejam bem, queridos leitores: um ministro do Supremo, que não tem voto algum, diz para senadores e deputados que têm coletivamente milhões de votos, que eles não podem mais criar ou alterar leis em matéria penal, uma atribuição exclusiva do Congresso dada a eles pela Constituição. Ou seja: os parlamentares, que foram votados e eleitos para legislar, não podem legislar – quem pode mesmo são os 11 ministros que não possuem um único voto e que sequer passaram pela experiência de ver seus rostos em uma urna eletrônica.
Felizmente, muitos brasileiros ficaram de alma lavada com outra fala, desta vez do ministro Luiz Fux – que é juiz de carreira, ao contrário de Toffoli, que foi reprovado em concursos para juiz –, que em um momento de majestosa clareza deu o puxão de orelha que muitos ministros do Supremo precisavam ouvir faz tempo: “Nós não somos juízes eleitos”, disse Fux. “O Brasil não tem governo de juízes e é por isso que se afirma e se critica, com vozes intensas, o denominado ativismo judicial. Quando se acusa o Judiciário de se introjetar nas searas dos demais Poderes, isso para o Judiciário é uma preocupação cara e muito expressiva. Nós assistimos cotidianamente ao Poder Judiciário sendo instado a decidir questões para as quais não dispõe de capacidade institucional”.
Como nós, brasileiros cansados, sofridos e desgastados por mais de 5 anos de abusos e de desmonte do combate à corrupção e do trabalho da Operação Lava Jato, precisávamos ouvir isso! E como ministros como Gilmar Mendes, Alexandre de Moraes e Dias Toffoli precisavam, mais do que nós, ouvir isso de um de seus próprios pares, depois de tantas ocasiões em que sujaram a toga fazendo o inverso do que deveriam, abusando de seus poderes em nome de sabe-se lá quais interesses! Obrigado, ministro Fux: atitudes como esta são o que nos traz esperança de que o Brasil não vai, afinal, tornar-se uma magistocracia, uma ditadura de magistrados togados que nunca receberam um voto sequer nas urnas. É preciso reconhecer e valorizar falas como essa, ainda que isso não nos deva fazer retroceder em nossa vigilância aos poderosos e nem na luta pelas nossas liberdades, que continuam violadas e abaladas.
Fux completou: “Sempre digo: nós não temos que fazer pesquisa de opinião pública. Nós temos que aferir o sentimento constitucional do povo. Quanto mais as nossas decisões se aproximam do sentimento — não é opinião passageira — do sentimento constitucional do povo, mais efetividade terão as nossas decisões e as direções que as nossas soluções indicam. Essa prática tem exposto o Poder Judiciário, em especial o STF, ao protagonismo deletério, corroendo a credibilidade dos tribunais quando decidem questões permeadas por desacordos morais que deveriam ser decididas na arena política. É lá que tem que ser decidido, é lá que se tem que pagar o preço social. Não é que nós tenhamos receio, mas temos que ter deferência porque num estado democrático a instância maior é o Parlamento”.
Bravo!
Por Deltan Dallagnol é mestre em Direito pela Harvard Law School e foi o deputado federal mais votado do Paraná em 2022. Trabalhou como procurador por 18 anos, atuando em várias operações no combate a crimes como corrupção e lavagem de dinheiro. Foi coordenador da operação Lava Jato em Curitiba.
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