Não nos parece uma medida eficaz ou inteligente inserir na Constituição brasileira esse tema, que, em parte, é típico de direito penal. Escreve Marcelo Figueiredo.
03/07/2024 06:04
“A simples punição de condutas não resolve o complexo problema das drogas”
A Comissão de Constituição e Justiça da Câmara de Deputados aprovou a chamada PEC das Drogas por 47 votos a 17, com mais recados de congressistas ao Supremo Tribunal Federal. A proposta agora será analisada em uma comissão especial, antes de poder ir a plenário.
A PEC, de autoria do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, inclui um trecho na Constituição para criminalizar quem tiver o porte e a posse de qualquer droga ilícita. Como sabemos, neste momento, o Congresso e o Supremo Tribunal Federal têm visões diferentes sobre como tratar o usuário de drogas, especialmente da maconha.
O Supremo Tribunal Federal definiu que pessoas flagradas com até 40 gramas de maconha ou seis plantas fêmeas de cannabis devem ser tratadas como usuárias e não traficantes – dependendo do contexto em que ocorra o flagrante. O critério deve prevalecer até que o Congresso estabeleça uma quantidade em lei.
Outros elementos podem ser usados para analisar cada caso. A primeira pergunta é inevitável: por que o Supremo Tribunal Federal teve de cuidar desse caso? Além disso, seria necessário adentrar em tantos detalhes técnicos da política antidrogas, questão afeta aos poderes Executivo e Legislativo e as autoridades da saúde pública? Ou bastaria uma análise constitucional da lei?
Não obstante as boas intenções manifestadas pela maioria dos ministros envolvendo o tema da igualdade – negros são condenados como traficantes com quantidades menores do que brancos – ainda assim, não nos convence a necessidade da matéria percorrer os escaninhos do STF.
Com respeito às posições contrárias, temas sensíveis de políticas de saúde pública deveriam ser majoritária e prioritariamente debatidos e resolvidos pela sociedade civil e por seus canais democráticos. São muito complexos e amplos para caberem na moldura acanhada do Poder Judiciário.
O grande problema todos conhecem: não há critérios objetivos para distinguir o que é tráfico e o que é consumo. Nesses casos, a decisão na maioria das democracias fica além da lei (genérica) nas mãos dos juízes. O Uruguai, por exemplo, optou pela descriminalização de todo o ciclo da maconha. Nos Estados Unidos, apenas alguns estados seguiram esse caminho. Na Colômbia, o uso e porte para uso pessoal são descriminalizados; a quantidade máxima para que o porte seja visto como para uso pessoal é de 20 gramas para a maconha.
Já no Canadá, o uso e porte de drogas para uso pessoal não são descriminalizados. A quantidade que definirá se uma pessoa é traficante ou consumidor é de 6 gramas para a maconha. Contudo, a lei do país prevê que quantidades maiores podem ser consideradas para uso pessoal dependendo das circunstâncias.
É absolutamente natural que em casos em que se discuta pauta de costumes, haja uma constante tensão entre o Poder Legislativo e o Poder Judiciário. O que não é desejável, e aí forçoso concluir pela culpabilidade ainda que por omissão do Congresso, é a reação dele às decisões do primeiro, sempre com o simples intuito de alterar uma posição.
Tivesse o Congresso o protagonismo da discussão, ter debatido e legislado sobre o tema – bem ou mal – antes do Judiciário, não haveria necessidade de embate ou de contraposição sem diálogo ou respeito entre ambos. Em muitas situações acusa-se o Supremo Tribunal Federal de tomar a dianteira do assunto e “legislar sobre o tema”. A questão não tão nada simples.
Em primeiro lugar, o Supremo não age de ofício. Em segundo, que não raro são os próprios partidos políticos, o poder político, derrotado ou minoritário em sua casa, que leva temas ou pautas de costumes ao Judiciário, antes mesmo da matéria estar madura para o debate no Legislativo. Talvez fosse bom repensar se os partidos pudessem ir ao STF antes da matéria ter sido pelo menos debatida no Congresso ou imaginar algum mecanismo que não incentivasse o ingresso de ações ausente a manifestação do poder popular sobre temas sensíveis da sociedade.
No debate na CCJ, deputados da oposição acusaram governistas de agirem em defesa do tráfico de drogas e do crime organizado. Já os governistas rebateram, dizendo que a proposta não trata da descriminalização e a visão de punir usuário não resolve o problema. Em quase toda Constituição do mundo não há proibição explicitamente o uso de drogas (salvo a da Federação Russa e do Irã), mas ao contrário, tratam mais genericamente do direito à saúde em seus amplos aspectos. Há também tratados internacionais e convenções que procuram controlar a produção, o tráfico e o uso de drogas.
Não nos parece uma medida eficaz ou inteligente inserir na Constituição brasileira esse tema das drogas, que, em parte, é típico de direito penal e deve estar na legislação especializada. Entendo que o usuário não deveria ser penalizado ou criminalizado. Agrada-nos a solução da Alemanha, por exemplo, onde o uso da maconha não é uma conduta prevista na lei, mas a posse de drogas para uso pessoal não é descriminalizada.
No caso de pequenas quantidades, o consumidor pode ser condenado a até seis meses de prisão ou a sanções administrativas. O promotor tem a liberdade de arquivar os casos dependendo das circunstâncias e do parecer de alguma autoridade ligada à saúde. O critério que diferencia o traficante de usuário leva em conta a quantidade da droga, a frequência do uso, a existência de dependência e a natureza da substância. A quantidade máxima considerada como para uso pessoal é de 2 gramas de maconha.
Vê-se que em matéria tão polêmica e movediça não há critérios seguros e sempre haverá necessidade de um diálogo entre todos os poderes da República, devendo prioritariamente a questão ser decidida pelos órgãos de representação popular que devem agir de forma integrada com a saúde pública. A simples punição de condutas não resolve o complexo problema das drogas em sua dimensão multidisciplinar. Aguardemos que o Congresso legisle sabiamente sobre o tema, ouvindo a experiência internacional, e não procure simplesmente confrontar o Supremo Tribunal Federal e sua visão sobre a matéria.
Por Marcelo Figueiredo, advogado, consultor jurídico, é professor de Direito Constitucional e Direito Constitucional Comparado nos cursos de graduação, extensão e pós-graduação da Faculdade de Direito da PUC-SP.