Opinião – Pablo Marçal é Bolsonaro

A política brasileira é uma atividade essencialmente emocional, conduzida por meio do engajamento. Quase nenhum candidato tem chances de obter votos apelando à razão. Escreve Paulo Cruz.

16/08/2024 05:27

“Ideólogos competem entre si, em uma imaginada fidelidade à sua verdade absoluta; e são rápidos em denunciar os desviantes ou traidores de sua ortodoxia partidária.” (Russell Kirk, A Política da Prudência)

Pablo Marçal disputa a prefeitura de São Paulo pela primeira vez.| Foto: Reprodução/ Instagram

Há muito tempo a política brasileira é uma atividade essencialmente emocional, conduzida por meio do engajamento. Quase nenhum candidato tem chances de obter votos apelando à razão, ao intelecto e à capacidade de discernimento do eleitor. A espetacularização, a “mitada” e até o ridículo são, atualmente, ferramentas indispensáveis para a atividade eleitoral (e política), ainda que o postulante, ao fim e ao cabo, tenha a pretensão de fazer um trabalho sério. E com a campanha eleitoral atual, para prefeito e vereadores, não tem sido diferente. A entrada do coach Pablo Marçal e do apresentador Datena na corrida paulistana tratou de estabelecer a “normalidade” naquilo que tinha chances de ser uma corrida eleitoral, pelo menos na maior capital do país, absolutamente insossa.

Entretanto, a entrada de Marçal na disputa em São Paulo trouxe ao bolsonarismo, que tinha tudo para abraçar tranquilamente a campanha do péssimo prefeito Ricardo Nunes – em articulação de Valdemar Costa Neto, cacique do PL (atual partido de Jair Bolsonaro) e, é bom que não esqueçamos, condenado a sete anos e dez meses de prisão por corrupção passiva e lavagem de dinheiro no mensalão –, alguns problemas, digamos, de identidade.

Pablo Marçal é, na política brasileira atual, uma espécie de troll; retórico habilidoso, oriundo do universo neopentecostal brasileiro – em que o discurso apelativo e manipulatório encontra larga aceitação entre pessoas carentes material e espiritualmente –, alcançou, com seu discurso ousado, triunfalista e que não mede consequências no enfrentamento de seus adversários, um caminho para o coração dos eleitores de Bolsonaro, carentes de seu líder que não só os deixou à mercê de Alexandre de Moraes após a derrota eleitoral, mas, no momento, está inelegível e obediente ao Centrão que negou, mas do qual, atualmente, parece se orgulhar em fazer parte – não só ao esfregar na cara de seus eleitores o fatídico “vocês votaram num cara do Centrão”, mas por receber mais de R$ 40 mil por mês do PL de Valdemar.

E não sou só eu que estou percebendo essa sedução de bolsonaristas em relação a Pablo Marçal. Isso é assunto na imprensa, mas, também, entre os próceres, os guaridões do espólio do ex-presidente. O youtuber Kim Paim, numa live recente, disse – num trecho que repercutiu nas redes sociais:

“Pessoas estão se deixando tomar pelo sentimento puramente… estão ficando cegas pelo emocional. A coisa não pode ser assim, gente. O fato do Nunes não ser um cara bom não pode transformar o Marçal num ídolo. O Marçal pode se transformar numa alternativa. Tudo bem, coloque: ʻele é uma alternativa, ele é meu candidato, ele é melhor que o Nunesʼ. Mas o que tá acontecendo é que existe um movimento que é uma idolatria cega ao Marçal.”

Mas o que me parece muito curioso na admoestação de Paim é que ela poderia ser – e, de fato, foi –utilizada para alertar as pessoas, lá nos idos de 2017/18, a respeito de ninguém menos que Jair Bolsonaro. Eu mesmo escrevi várias vezes sobre isso. Como, por exemplo, em um artigo de 12 de julho de 2018, intitulado “É urgente ter paciência”, em que eu disse: “a todo tempo, somos tentados pela ilusão de que somos capazes de suplantar as imperfeições inerentes a essa vida e, em geral, de modo inconsequente, depositarmos nossa esperança numa ideia, num grupo ou até mesmo numa pessoa. Em todo momento nosso senso de prudência é testado pela urgência de nossas aspirações imediatas”. Ou no seguinte, “Siracusa é aqui”, de 19 de julho de 2018, em que digo:

“A verdade é que somos quase todos, de fato, ingenuamente impacientes. A tentação por tomarmos nas mãos o destino do mundo, de manipularmos o imponderável, de, na expressão bíblica, recalcitrarmos contra os aguilhões de nossa natureza imperfeita, é quase irresistível. Dos nossos interesses mais íntimos àqueles cuja finalidade é o interesse de muitos – como a política –, as implicações de realizarmos tudo apressadamente são sempre incertas e quase sempre desastrosas.”

Ou mesmo quando, abertas todas as urnas e declarada a eleição de Bolsonaro, em 1.º de novembro de 2018, afirmei, num artigo intitulado “O que esperar dos governados por Bolsonaro?”, o seguinte: “Se você acompanha meus artigos aqui, nesta Gazeta do Povo, estimado leitor, sabe que considero nosso papel, como nação, como indivíduos, muito mais importante que o papel dos políticos. Já disse e repito: a política é o resultado do que somos como nação, e não o contrário”.

Ou seja, foram vários e vários artigos alertando para o perigo da paixão política, para o desastre, demonstrado ao longo da história, que há na tentativa de antecipar, política e materialmente, e entregar nas mãos de um político (ou de um grupo) o curso daquilo que só a educação e a cultura podem produzir. No entanto – pobre de mim! –, eu apelava à razão de meu leitor. Eu, como professor, humildemente valorizava a capacidade de discernir daqueles que me liam – um articulista declaradamente conservador, que preza pela liberdade que ilustra essa coluna desde o primeiro artigo. Mas fui vencido e serei novamente.

Que fique registrado, mais uma vez, que Marçal é, simbolicamente, aquilo que Bolsonaro foi em 2018. Passada essa moda, virá outra; e nós, brasileiros, enquanto não entendermos que temos um longo caminho pela frente, que não pode ser vencido pelo alarmismo anticomunista demodé dessa direita que insiste em permanecer na dependência de um Dom Sebastião, patinaremos no atraso, na irrelevância e numa posição que não só fortalece, mas confirma as teses de nossos adversários sobre nós.

 

 

 

Por Paulo Cruz é professor e palestrante nas áreas de filosofia, educação e questões relacionadas ao racismo no Brasil. Formado em Filosofia e mestre em Ciências da Religião, é professor de Filosofia e Sociologia na rede paulista de ensino público. Em 2017 foi um dos agraciados com a Ordem do Mérito Cultural, honraria concedida pelo Ministério da Cultura, anualmente, por indicação popular, a nomes que se destacaram na produção e divulgação cultural.

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