O impacto das abstenções dos votos nulos e brancos nas eleições aponta para uma crise de representatividade que não pode ser ignorada. Escreve Thiago Esteves.
19/11/2024 05:57
“O fundo eleitoral alcançou valores recordes em 2024”
As eleições municipais de 2024 trouxeram à tona uma questão crucial para a democracia brasileira: o impacto das abstenções, votos nulos e brancos sobre a legitimidade dos eleitos, especialmente em um contexto em que o aumento de gastos públicos, impulsionado por fundos eleitorais e partidários, e emendas parlamentares, não conseguiu reverter o crescente afastamento dos eleitores. Essa tendência é visível em várias regiões do país, com índices de abstenção e votos inválidos que desafiam a percepção de representatividade e questionam o papel dos recursos destinados a mobilizar o eleitorado.
Analisando-se apenas os dados referentes ao primeiro turno das eleições municipais, pode-se observar que os índices de abstenções e votos inválidos ganham ainda mais relevância ao se observar os municípios com mais de 200 mil eleitores. Em várias capitais, como São Paulo, Porto Alegre, Curitiba e Rio de Janeiro, o número de eleitores que optaram pela abstenção, ou cujos votos foram nulos e brancos, superou a quantidade de votos recebidos pelo candidato mais votado. Esse fenômeno se repete em municípios como Goiânia e Belo Horizonte, onde a soma de “não votos” no primeiro turno excede significativamente os votos obtidos pelos primeiros colocados. Em São Paulo, por exemplo, o prefeito Ricardo Nunes recebeu 1.801.139 votos, enquanto o número de abstenções atingiu 2.548.857. Situação semelhante é observada no Rio de Janeiro, onde Eduardo Paes obteve 1.861.856 votos, comparados aos 1.930.202 “não votos”. Esses dados evidenciam uma crise de representatividade e sugerem um aumento do distanciamento entre eleitores e o processo eleitoral.
O levantamento dos dados do primeiro turno das eleições municipais de 2024 revela que, em diversos municípios, a soma das abstenções, votos nulos e brancos superou o número de votos recebidos pelo candidato mais votado. No Norte, por exemplo, 1,78% dos municípios registraram essa situação, correspondendo a 8 de 450 cidades. Na região Centro-Oeste, o percentual foi de 1,7% (7 de 467 municípios). No Nordeste, o índice foi de 0,5% dos municípios, ou 9 de 1.793 cidades. Contudo, os números são significativamente maiores no Sudeste, onde 7,4% dos municípios, representando 123 de 1.668, observaram esse fenômeno. No Sul, 3,7% dos municípios (44 de 1.191) também apresentaram essa característica, evidenciando que o fenômeno dos “não votos” é uma questão nacional.
Os dados gerais das eleições de 2024 revelam uma realidade ainda mais ampla em relação ao volume de “não votos” em comparação com os votos válidos. Cerca de 113 milhões de eleitores votaram em candidatos, enquanto aproximadamente 33 milhões e 797 mil optaram pelas abstenções, acompanhados de 5 milhões e 272 mil de votos nulos e 3 milhões e 444 mil de votos brancos. Isso significa que, do universo total de eleitores, aproximadamente 42 milhões, ou uma parcela considerável, escolheu não validar suas preferências por meio de um candidato, o que representa um índice alarmante de afastamento e rejeição ao processo político vigente.
Esse volume de “não votos” é significativo por sinalizar um distanciamento substancial da população com relação à política municipal e à escolha de seus representantes. Esses dados indicam que, mesmo com esforços para aumentar a participação por meio de campanhas e incentivos, milhões de eleitores preferiram abster-se ou anular seu voto, sugerindo um descontentamento ou uma desilusão com o sistema político local. Esse fenômeno é especialmente preocupante no contexto de uma democracia que depende de altos índices de participação para conferir legitimidade aos eleitos.
O cenário de alta abstenção contrasta com o aumento significativo dos gastos públicos direcionados ao processo eleitoral, especialmente por meio dos fundos eleitorais e partidários, além das emendas parlamentares destinadas a fortalecer a base política dos candidatos. A justificativa para esses recursos geralmente se pauta na necessidade de promover a participação cívica, aumentar o conhecimento sobre candidatos e propostas e, assim, reduzir os índices de abstenção. No entanto, o fenômeno da abstenção e dos votos nulos e brancos continua a crescer, especialmente em municípios de maior porte, onde os recursos são amplamente empregados. O que se observa é uma desconexão crescente entre os recursos investidos e o resultado em participação efetiva, uma tendência que desafia as estratégias convencionais de mobilização eleitoral e exige uma reavaliação sobre a aplicação desses fundos.
O fundo eleitoral, que visa dar suporte a campanhas de candidatos e partidos, alcançou valores recordes em 2024, supostamente visando fortalecer as atividades eleitorais e garantir visibilidade aos candidatos. As emendas parlamentares, por outro lado, representaram uma ferramenta política para fortalecer o vínculo dos parlamentares com suas bases, garantindo investimentos locais e atendendo a demandas da população. Entretanto, esses recursos parecem ter tido um efeito limitado no estímulo à participação eleitoral. As elevadas taxas de abstenção revelam que, apesar dos investimentos, a população em muitos municípios continua optando pela não participação, colocando em dúvida a eficácia das emendas e dos fundos em assegurar uma representação mais engajada e legitimada pelo voto popular.
Ao analisar os dados de abstenções, votos nulos e brancos nas eleições municipais de 2024, 2020, 2016 e 2012, observamos tendências interessantes no comportamento eleitoral em diferentes contextos políticos e sociais. Em 2012, ainda sem os efeitos diretos da crise política desencadeada pela Lava Jato, a abstenção era significativamente menor em comparação aos anos seguintes, especialmente no Centro-Oeste (16,00%), Sudeste (17,30%) e Sul (13,99%). No entanto, os eleitores que participaram demonstraram um alto índice de descontentamento, refletido em uma quantidade expressiva de votos nulos, como no Sudeste (10,08%) e Nordeste (7,51%), indicando um voto de protesto expressivo.
Em 2016, no auge da crise política, com o escândalo da Lava Jato afetando a confiança no sistema, observou-se um aumento na abstenção, especialmente no Sudeste (20,31%) e Centro-Oeste (18,11%). Contudo, o percentual de votos nulos também se manteve alto, alcançando seu pico em regiões como o Sudeste (13,25%) e Nordeste (8,24%). Esse cenário sugere que, enquanto parte dos eleitores que votaram nulo em 2012 passou a optar pela abstenção em 2016, uma parcela significativa continuou utilizando o voto nulo como forma de manifestação de insatisfação política, mantendo o índice elevado.
Em 2020, a pandemia de Covid-19 trouxe um novo fator de afastamento, elevando ainda mais a abstenção, especialmente no Sudeste (26,33%) e Norte (20,83%). Em contraste, os índices de votos nulos e brancos diminuíram em relação a 2016, sugerindo que muitos eleitores que poderiam ter votado nulo optaram por não comparecer às urnas, possivelmente por receio de contágio. Essa migração do voto nulo para a abstenção indica um desinteresse crescente na participação política direta, intensificado pela crise sanitária.
Em 2024, com a crise sanitária controlada, os índices de abstenção permanecem elevados, embora com leve redução em algumas regiões, como no Sul (22,93%) e Nordeste (16,55%). O percentual de votos nulos diminuiu consideravelmente em comparação com 2016 e 2020, especialmente no Centro-Oeste (3,15%) e Norte (2,46%). Essa redução sugere a confirmação da tendência observada em 2020, onde eleitores insatisfeitos preferem se abster completamente do processo eleitoral. A análise sugere que a desconfiança no sistema político que impulsionou o voto nulo em 2012 e 2016 vem se transformando, nos últimos ciclos eleitorais, em uma decisão de abstenções, reduzindo o uso do voto nulo como forma de protesto e reforçando o fenômeno de afastamento do eleitorado.
A prevalência dos “não votos” como fator preponderante em diversas regiões e o elevado número de eleitores que se abstêm ou invalidam seu voto provocam questionamentos profundos sobre a representatividade dos eleitos. Esse fenômeno, que poderia ser descrito como uma “crise de legitimidade eleitoral”, sugere que, em muitos casos, os eleitos podem refletir a vontade de uma maioria não engajada, mas sim de uma minoria que efetivamente participa do processo. Esse distanciamento entre eleitores e eleitos cria um déficit de legitimidade e fragiliza a democracia, especialmente em um sistema que já enfrenta desafios em termos de confiança pública e eficácia na representação.
O aumento dos recursos públicos para aplicação durante o processo eleitoral, emendas e fundos eleitorais contrasta fortemente com os dados de abstenção, votos nulos e brancos, indicando que esses recursos, como estão sendo utilizados, não são suficientes para reverter o afastamento dos eleitores. A realidade das eleições de 2024 revela uma necessidade urgente de revisar as políticas e estratégias de engajamento eleitoral, considerando a perspectiva de uma participação mais autêntica e representativa. É fundamental repensar os métodos de mobilização política, e as ações de campanha devem ser adaptadas para dialogar com uma população que se sente alheia ao processo.
Uma proposta seria direcionar os fundos para programas de educação política que promovam um entendimento mais profundo sobre o papel dos municípios e o impacto direto das eleições no cotidiano dos cidadãos. Além disso, partidos e candidatos poderiam focar em uma comunicação mais transparente e acessível, que responda às demandas locais e mostre resultados tangíveis para a população. Outra sugestão seria a revisão dos critérios para o uso das emendas parlamentares, assegurando que essas sejam aplicadas em projetos que gerem benefícios visíveis e imediatos para a comunidade, diminuindo assim o afastamento entre representantes e representados.
Em conclusão, o impacto das abstenções dos votos nulos e brancos nas eleições de 2024 aponta para uma crise de representatividade que não pode ser ignorada. Ao mesmo tempo, o aumento dos gastos públicos no processo eleitoral evidencia uma dissonância entre o investimento financeiro e o retorno em participação efetiva. Para uma democracia mais robusta, é necessário um esforço coletivo para compreender e responder às razões por trás do afastamento eleitoral, promovendo uma participação cívica mais significativa e alinhada com os princípios democráticos.
Por Thiago Esteves, advogado, é mestre em Ciência Política e e sócio da Eixo Relações Institucionais.