A fragmentação de interesses entre os membros, somada às tensões geopolíticas globais, impede que decisões coletivas robustas sejam alcançadas. Escreve Paulo Filho.
19/11/2024 08:02
“Trump não está presente, mas suas ideias têm um representante: Javier Milei”
A cúpula dos líderes do G-20 está em andamento no Rio de Janeiro. Líderes das dezenove maiores economias do mundo, além da União Europeia e da União Africana, responsáveis por 85% do PIB, 75% do comércio mundial e dois terços da população global, reúnem-se hoje e amanhã para discutir as propostas elaboradas ao longo do ano sob a liderança brasileira: reforma da governança global, desenvolvimento sustentável, inclusão social e combate à fome.
A presidência brasileira do G-20 também enfatizou a urgência da preservação ambiental e da recuperação econômica inclusiva.
Entretanto, a busca por uma declaração final consensual tem se mostrado desafiadora. O G-20, concebido como um espaço para coordenar políticas em resposta a crises globais, tornou-se cada vez mais refém de disputas geopolíticas e ideológicas. O grupo enfrenta desconfianças mútuas e carece de consenso sobre quais deveriam ser suas prioridades.
As duas grandes guerras em curso — na Ucrânia e no Oriente Médio — complicam ainda mais a busca por convergências. No caso da Ucrânia, a Rússia, representada na cúpula pelo chanceler Sergey Lavrov, vetaria qualquer texto que lhe atribuísse culpa pelo conflito.
Por outro lado, líderes europeus, acompanhados pelos argentinos, insistem na necessidade de imputar à Rússia a origem e as consequências da guerra. Situação semelhante ocorre no Oriente Médio, onde os membros do G-20 discordam sobre até que ponto Israel deve ser responsabilizado pela crise humanitária na Faixa de Gaza.
A cúpula também reflete uma luta por narrativas globais. Enquanto líderes como Joe Biden reafirmam valores liberais, Xi Jinping promove a visão de uma “comunidade de futuro compartilhado” sob liderança chinesa. Essa competição de modelos dificulta ainda mais a construção de consensos. A emergência do BRICS como um bloco influente, com recentes movimentos de expansão, reforça a fragmentação do consenso global em esferas de influência.
O presidente dos EUA, Joe Biden, está presente, mas a sombra de Donald Trump paira sobre a reunião e todos sabem que é muito pouco provável que os compromissos eventualmente assumidos pelos EUA na cúpula sejam mantidos pelo próximo presidente. Trump já se posicionou contrariamente a vários desses temas, como transição energética, desenvolvimento sustentável e mudanças climáticas.
O presidente da China, Xi Jinping, também está no Brasil, vindo do Peru, onde participou da reunião dos países membros da Cooperação Econômica Ásia-Pacífico (APEC) e, com a presidente Dina Boluarte, inaugurou o gigantesco porto de Chancay, construído e operado pelos chineses no âmbito da Iniciativa Belt and Road, com o objetivo de ser o novo ponto de entrada para os produtos chineses na América do Sul.
Xi Jinping já declarou que seu país está alinhado às propostas brasileiras no G-20. Seu país também advoga a reforma da governança global, especialmente do Fundo Monetário Internacional, do Banco Mundial e da Organização Mundial do Comércio, promovendo políticas que “liberalizem e facilitem o comércio e o investimento internacionais”. O presidente chinês usa a vinda à América do Sul para tentar aumentar a influência do seu país no subcontinente, o que causa grande desconforto entre os norte-americanos.
Trump não está presente, mas suas ideias têm um representante: Javier Milei, presidente da Argentina. Na semana passada, Milei mandou a delegação argentina abandonar a COP 29, Conferência do Clima que está em andamento no Azerbaijão, em uma medida que demonstra o ceticismo do seu governo em relação às mudanças climáticas. Essa posição é uma dentre as muitas em que Milei se alinha à Trump.
É interessante lembrar que o próximo presidente dos EUA, em seu primeiro mandato, retirou o país do Acordo de Paris, que estabelece metas para a redução da emissão de gases do efeito estufa.
Outro líder importante dos BRICS, Narendra Modi, Primeiro – Ministro da Índia, também está no Brasil. Sua participação no G-20 é a escala intermediária de uma viagem que já passou pela Nigéria, maior economia da África e terá como destino a Guiana, país que recebe uma grande diáspora indiana e que está ameaçado pelas ambições territoriais da Venezuela. A presença incomum de um líder indiano na Guiana, especialmente neste momento, transmite uma mensagem de apoio que será percebida claramente não só em Caracas, mas também em Moscou e Pequim, capitais que, em escalas diferentes, apoiam o regime de Maduro.
Os temas destacados pelo Brasil são todos importantes, mas as perspectivas são de que os resultados da reunião sejam modestos.
Mesmo propostas mais consensuais, como o combate à fome e o financiamento climático, enfrentam obstáculos significativos, refletindo a dificuldade de traduzir discursos em ações concretas no atual cenário das relações internacionais.
A cúpula do G-20 no Brasil ilustra o estado crítico do multilateralismo em um mundo cada vez mais dividido. Apesar do esforço do país anfitrião em promover um diálogo amplo e destacar a urgência de problemas globais, as dinâmicas de poder e os interesses divergentes entre as grandes potências transformam o fórum em uma vitrine de discursos incompatíveis.
Resta saber se, mesmo com resultados modestos, a reunião pode ao menos reforçar a relevância do G-20 como um espaço de cooperação em um sistema internacional em transição. Caso contrário, o mundo corre o risco de perder um dos últimos grandes fóruns capazes de articular respostas conjuntas para desafios verdadeiramente globais.
Por Paulo Filho é coronel de cavalaria da reserva do Exército e analista de assuntos estratégicos. É mestre em Ciências Militares pela Escola de Comando e Estado-Maior do Exército.