Com salários baixos e um custo de vida elevado, a maioria da população ainda depende de uma jornada extensa para garantir o básico. Escreve Caren Benevento.
21/11/2024 06:53
“O setor empresarial já enfrenta o desafio do aumento da automação e da inteligência artificial”
A discussão sobre a redução da jornada de trabalho no Brasil, embasada em propostas como a PEC que visa estabelecer um limite de 36 horas semanais em uma escala de quatro dias, levanta questionamentos profundos sobre as condições laborais, a organização do setor econômico e o impacto social dessa mudança. A redução da carga horária para 36 horas semanais – limitando-a a quatro dias – reflete uma tentativa de aproximação de práticas adotadas em países como Bélgica e Escócia. No entanto, essa proposta enfrenta obstáculos práticos e culturais ao se deparar com o mercado de trabalho brasileiro, principalmente nos setores que dependem da escala de seis por um, como o comércio e outros que mantêm atividade contínua.
A escala 6×1 permite ao comércio manter suas atividades funcionando praticamente em tempo integral, proporcionando aos consumidores conveniência e aos trabalhadores uma fonte constante de rendimento – frequentemente atrelado a comissões. Reduzir o tempo de trabalho semanal afetará diretamente essa dinâmica. A diminuição de dias trabalhados pode comprometer a renda de trabalhadores que dependem de comissões e agravar o custo para pequenas empresas que compõem 90% do mercado de trabalho formal no país.
A alternativa para essas empresas seria contratar mais funcionários para cobrir a redução de jornada, o que elevaria seus custos operacionais e provavelmente repassaria o impacto financeiro ao consumidor, gerando um aumento nos preços e reduzindo a competitividade. Além disso, o setor empresarial já enfrenta o desafio do aumento da automação e da inteligência artificial, o que agrava o risco de desemprego em diversos segmentos.
Outro aspecto relevante é a pejotização, uma prática que, nas últimas décadas, tem se intensificado como uma forma de contratação que busca evitar o vínculo empregatício tradicional. Embora a CLT, no artigo 3º, estabeleça critérios para a caracterização do vínculo de emprego – como pessoalidade, habitualidade, subordinação e onerosidade – a realidade moderna desafia essas definições. As relações de trabalho evoluíram para um modelo de subordinação mais sutil, conhecida como subordinação estrutural, onde a hierarquia direta não se faz mais tão evidente. Contudo, essa autonomia muitas vezes é ilusória, especialmente quando a natureza do trabalho permanece integrada à atividade econômica do contratante.
O Supremo Tribunal Federal tem reconhecido a possibilidade da pejotização, mas ressalta que deve haver autonomia real para o trabalhador. Isso implica que não pode existir uma relação de subordinação disfarçada, onde o trabalhador cumpre uma jornada controlada e depende economicamente do tomador de serviços como se fosse um empregado. Essa prática, embora legal, ainda precisa ser aplicada com cautela, respeitando os limites que a caracterizam como um trabalho autônomo e evitando fraudes ao vínculo empregatício.
Para o Brasil, a adoção de uma jornada reduzida precisa ser cautelosamente planejada e debatida, principalmente considerando a estrutura tributária e as realidades econômicas das empresas e dos trabalhadores. Além disso, o aumento da pejotização – muitas vezes uma resposta ao alto custo da contratação formal – requer uma regulamentação que proteja o trabalhador sem inviabilizar o funcionamento das empresas. A redução de jornada, se implementada de forma rígida e sem a flexibilidade necessária para adaptar-se a diferentes setores e realidades, corre o risco de se tornar uma medida que gera mais problemas do que soluções.
A proposta de jornada reduzida pode oferecer mais tempo livre aos trabalhadores, mas a questão principal que se levanta é se o objetivo será realmente alcançado. Com salários baixos e um custo de vida elevado, a maioria da população ainda depende de uma jornada extensa para garantir o básico. O que o país precisa, antes de diminuir as horas trabalhadas, é impulsionar seu desenvolvimento econômico, possibilitando aos trabalhadores maior segurança financeira e autonomia real, seja em uma relação de emprego formal ou em modelos de contratação autônoma que respeitem as leis e os direitos básicos do trabalho.
Por Caren Benevento é sócia do escritório Benevento Advocacia e pesquisadora do Grupo de Estudos do Direito Contemporâneo do Trabalho e da Seguridade Social da Universidade de São Paulo.