Opinião – Não é só pelo Pix

Os burocratas estatais erram quando pensam que conseguirão intimidar quem já enfrenta a dura luta pela sobrevivência em meio ao crime que domina tudo. Escreve Roberto Motta.

21/01/2025 06:04

“Não foi só pelos vinte centavos.”

Foto: Gazeta do Povo com GALL-E

“Todos os homens são criados iguais e dotados pelo seu Criador de certos direitos inalienáveis, entre os quais estão a vida, a liberdade e a busca da felicidade”. Esse texto foi escrito pelo americano Thomas Jefferson. Ele faz parte da Declaração de Independência das treze colônias inglesas na América do Norte e foi aprovado por seus representantes em 4 de julho de 1776.

Esse é um documento único. É difícil encontrar outros documentos governamentais que falem sobre felicidade, muito menos que reconheçam na sua busca um direito dos cidadãos. Há quem aponte para a Declaração de Independência como a fonte de muitas peculiaridades dos Estados Unidos, entre elas uma robusta defesa da individualidade e da autonomia pessoal.

O texto não fala sobre direito à felicidade, mas sobre o direito de buscá-la. É uma diferença gigantesca. Nenhum governo pode garantir a felicidade. Mas é justamente essa a promessa dos governos esquerdistas: vamos te fazer feliz garantindo a satisfação de todas as suas necessidades alimentares, habitacionais, médicas, financeiras, culturais, ocupacionais, recreativas, afetivas e até sexuais (no carnaval de 2020, por exemplo, a prefeitura do Rio de Janeiro distribuiu 64.529 kits com gel lubrificante e preservativos). Esse equívoco é resultado de uma mistura confusa das melhores intenções da revolução francesa com as piores ideias do marxismo.

O melhor que qualquer Estado pode fazer é cumprir sua missão essencial: garantir os direitos fundamentais. Entre eles estão o direito à vida, o direito de ir e vir, a liberdade de expressão (que, naturalmente, inclui o direito de criticar o governo) e o direito à propriedade (um direito essencial para a proteção do cidadão e de sua família). Em geral, o Estado brasileiro falha na garantia desses direitos. Todos os anos, mais de 40.000 brasileiros morrem assassinados (são um milhão de homicídios a cada 20 anos); a censura virou uma obsessão estatal; e a propriedade privada é refém permanente do humor dos burocratas do Estado (que decidem se ela tem, ou não, uma certa função social).

Mas, como até um relógio parado está certo duas vezes por dia, o Estado brasileiro às vezes acerta. Um desses acertos foi o Pix, uma forma rápida e conveniente de transferir dinheiro. O Pix foi adotado pelo povo. Prestadores de todo tipo de serviço, vendedores ambulantes e até pedintes (em pelo menos dois casos que eu testemunhei) substituíram dinheiro por Pix. Sempre me espantou que o Estado brasileiro conseguisse criar algo tão útil.

Há poucos dias, o Estado comunicou a criação de um procedimento novo: operadoras de cartão de crédito e instituições de pagamento seriam obrigadas a informar operações que somassem mais de R$ 5 mil (pessoas físicas) ou R$ 15 mil mensais (empresas). O objetivo seria aumentar o controle sobre as operações e evitar evasão fiscal e sonegação.

A mudança no Pix, pessimamente comunicada, gerou grande alarme, principalmente entre os mais humildes. A maioria das pessoas não entendeu a mudança e nem seu impacto. A culpa não é do cidadão. Gato escaldado tem medo de água fria. Todo mundo está acompanhando o déficit nas contas públicas. O trabalhador brasileiro já entendeu que, no final, ele pagará essa conta. Se existe um povo acostumado a esperar sempre o pior dos seus governos, esse é o povo brasileiro.

A consequência foi uma onda de indignação que se espalhou como um incêndio numa floresta da Califórnia; um sentimento muito próximo da reação ao aumento das passagens que levou às manifestações de 2013, embalada pelo slogan “não é só por vinte centavos”. Pessoas me paravam na rua para pedir esclarecimentos, dividir sua frustração e falar de tudo o que o Estado faz que as deixa inseguras, ameaçadas e confusas. As redes sociais foram inundadas por protestos. O vídeo do deputado Nikolas Ferreira comentando o assunto teve mais de 300 milhões de visualizações só no Instagram, um provável recorde mundial.

A reação do Estado e de seus porta-vozes foi ameaçar os que protestavam e sugerir a cassação do deputado. O Estado finalmente recuou da mudança no Pix, mas as ameaças continuam. Uma jornalista de um dos maiores conglomerados de mídia do país afirmou no ar que “desacreditar e atacar medidas públicas é crime”, uma frase que já pode ser usada como slogan do Estado Novo de Direito.

Mas um cristal quebrado não pode ser reconstruído, e não existe cristal mais frágil do que a confiança de população mais humilde, dos homens e mulheres pobres que pagam as contas do luxo e do nepotismo.

Os burocratas estatais erram quando pensam que conseguirão intimidar quem já enfrenta a dura luta pela sobrevivência em meio ao crime que domina tudo, à corrupção que contamina tudo e à burocracia que tudo dificulta.

Não foi só pelos vinte centavos. Não é só pelo PIX.

 

 

 

Por Roberto Motta é pesquisador da área de segurança pública, ex-consultor de tecnologia do Banco Mundial e ex-Secretário de Estado do Conselho de Segurança do Rio de Janeiro. É autor de 4 livros: “Ou Ficar A Pátria Livre”,  “Jogando Para Ganhar: Teoria E Prática da Guerra Política”, “Os Inocentes do Leblon” e “A Construção da Maldade: Como Ocorreu a Destruição da Segurança Pública Brasileira”. É graduado em engenharia pela PUC-RJ, tem mestrado em gestão pela Fundação Getúlio Vargas. Foi um dos fundadores do Partido Novo e é comentarista na Jovem Pan News.

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