Não podemos colocar toda responsabilidade nas mãos dos especialistas. A preservação do patrimônio é, também, um compromisso social. Escreve Fernanda Bugo.
03/05/2025 10:31
“Vejo de perto o quanto ainda precisamos avançar na preparação técnica”

Escombros na Igreja de São Francisco de Assis (conhecida como “igreja de ouro”). Foto: divulgação/CNN
Em fevereiro, a queda do forro da Igreja de São Francisco de Assis (conhecida como “igreja de ouro”), em Salvador, acendeu um alerta sobre algo que muitas vezes deixamos em segundo plano: a preservação do nosso patrimônio histórico. Não estamos falando apenas da perda de um bem material, mas de um pedaço da nossa memória coletiva, da nossa identidade e da nossa história.
Preservar exige atenção constante e, sobretudo, conhecimento técnico. Duas frentes se destacam nesse processo: o restauro e a conservação preventiva. São práticas distintas, mas que precisam andar lado a lado.
Ao contrário do que muita gente imagina, o restauro não tem como objetivo devolver a edificação ao seu “estado original”. O que o restauro busca, quando bem conduzido, é compreender os diferentes períodos e intervenções que moldaram aquele imóvel ao longo do tempo. É um trabalho que envolve pesquisa, cuidado e, principalmente, responsabilidade com a memória coletiva que aquele espaço carrega.
Já a conservação preventiva é um processo contínuo, voltado ao monitoramento e à manutenção da estrutura e de seus elementos. Trata-se de uma estratégia para preservar, ao máximo, a integridade física da edificação ao longo dos anos.
Em projetos de restauro, é fundamental realizar um levantamento iconográfico cuidadoso: plantas antigas da prefeitura, mapas, arquivos de jornal e registros históricos do próprio imóvel ajudam a reconstituir o que foi alterado. A partir daí, cabe à equipe decidir qual período melhor representa a história viva daquele espaço – e o que deve ser mantido, ou não.
Essa decisão também passa pela função que se quer atribuir ao imóvel. Já vimos, em muitas experiências, que adaptar ambientes como banheiros e cozinhas pode garantir que o edifício continue em uso, o que, por si só, já favorece sua conservação a longo prazo.
É nesse ponto que entra o princípio da reversibilidade: qualquer intervenção feita, sempre que possível, deve poder ser desfeita sem danos significativos. Claro que há exceções, como é o caso de instalações voltadas à segurança e à acessibilidade, que devem ser permanentes.
No entanto, a manutenção preventiva enfrenta obstáculos reais, como a escassez de mão de obra especializada e a falta de fiscalização. É preciso lembrar que edificações históricas podem ter sido construídas com técnicas e materiais do século XVIII – como a própria Igreja dede São Francisco de Assis – ou mais recentes, como os dos anos 1970. Cada período exige conhecimento específico. Um exemplo extremo de intervenção malfeita é o do quadro Ecce Homo, restaurado de maneira desastrosa em 2012. O problema, nesse caso, não foi a intenção, mas a execução sem preparo técnico.
No caso da igreja baiana, há elementos que careciam de monitoramento constante, como a madeira nas estruturas do telhado, forro e retábulos, além das telhas, calhas e revestimentos externos que evitam infiltrações e danos estruturais. São detalhes que, muitas vezes, passam despercebidos até que o problema se agrave.
Hoje, temos à disposição recursos importantes, como reforços estruturais não invasivos – que garantem segurança sem comprometer a estética – e sensores capazes de identificar alterações na carga ou na umidade da estrutura. São tecnologias que podem antecipar falhas e evitar tragédias.
Outro ponto que não posso deixar de destacar é a formação dos profissionais envolvidos. Como arquiteta e professora universitária, vejo de perto o quanto ainda precisamos avançar na preparação técnica e interdisciplinar para lidar com esses desafios. O restauro exige diálogo com a história, com a cultura e, muitas vezes, com a sociologia.
Mas não podemos colocar toda essa responsabilidade apenas nas mãos dos especialistas. A preservação do patrimônio é, também, um compromisso social. É preciso educar a população sobre o valor simbólico e histórico desses imóveis. Precisamos sair da lógica reativa e caminhar rumo a uma política preventiva – com investimento público, formação técnica de qualidade e, acima de tudo, engajamento coletivo. Preservar o que nos trouxe até aqui é também uma forma de garantir o que seremos no futuro.
Por Fernanda Buga é arquiteta, urbanista e coordenadora do curso de Arquitetura e Urbanismo do Centro Universitário de Jaguariúna (UniFAJ). Mestre em Requalificação Urbana pela PUC-Campinas, conta com mais de 10 anos de experiência nas áreas de projetos e docência.