A Constituição de 1988 jamais outorgou ao Supremo Tribunal Federal o papel de tutor da consciência nacional. Escreve Gregório Rabello.
06/05/2025 05:35
“O que se presencia é uma inversão do pacto republicano.”

A Justiça, estátua na Praça dos Três Poderes, diante do Supremo Tribunal Federal. (Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil)
A harmonia entre os Três Poderes da República não é apenas uma fórmula clássica dos livros de teoria política. É o alicerce que separa civilizações estáveis de projetos autoritários disfarçados de institucionalidade. Em qualquer regime verdadeiramente democrático, o Judiciário atua como instância de contenção: delimita atribuições, controla excessos, interpreta com sobriedade. Torna-se perigoso, no entanto, o momento em que esse mesmo Poder passa a legislar, governar e punir – sem ter recebido, para isso, autorização alguma do voto popular.
A centralidade política que o Supremo Tribunal Federal assumiu nos últimos anos não deriva de reforma constitucional nem de qualquer consenso institucional sobre seu papel. Resulta da ocupação progressiva de espaços que, por omissão ou por conveniência, foram sendo esvaziados pelos demais Poderes. O que deveria ser instância de revisão jurídica transformou-se em fonte normativa primária, em voz moral dominante e, não raramente, em tribunal da verdade oficial.
É oportuno recordar que, para Montesquieu – pensador fundamental na teoria da separação dos Poderes –, o Legislativo ocupa o primeiro lugar na estrutura do Estado, pois representa diretamente a vontade do povo. O Executivo surge como segundo poder, incumbido da implementação das leis e da administração da coisa pública. Já o Judiciário, por sua natureza corretiva e de controle, deve ocupar o terceiro posto, limitado à função de julgar, sempre com contenção, jamais com protagonismo. Quando essa ordem é invertida, e o poder de julgar se torna o poder de legislar e governar, deixa de haver equilíbrio institucional e começa a se instaurar uma hegemonia construída à revelia do processo democrático.
Esse modelo se assemelha, de modo incômodo, ao que se observa em certos regimes autoritários. Na Venezuela, a Sala Constitucional do Tribunal Supremo passou a atuar, a partir dos anos 2000, como instrumento político de supressão da oposição legislativa e de legitimação automática do Executivo. Na Rússia, a Corte Constitucional ratifica decisões do Kremlin sem qualquer resistência, conferindo aparência jurídica ao que é, na essência, vontade unilateral do poder central. Em ambos os casos, o padrão se repete: um Judiciário que abdica da neutralidade e passa a exercer protagonismo funcional, substituindo os canais legítimos de deliberação coletiva.
No Brasil, os ritos institucionais permanecem. Mas o Judiciário, justamente quem deveria resguardá-los, frequentemente ignora ou distorce as formalidades que sustentam o devido processo legal. O conteúdo das decisões, entretanto, aponta para uma desconfiguração profunda da lógica institucional. Leis aprovadas pelo poder detentor da prerrogativa legiferante são suspensas por decisões monocráticas. Ações fiscalizatórias são paralisadas com base em fundamentos interpretativos voláteis. Princípios constitucionais como liberdade de expressão, presunção de inocência e imunidade parlamentar são relativizados à luz de categorias vagas – muitas vezes criadas sem qualquer correspondência no texto constitucional.
Não é ficção. Em 2023, o STF suspendeu os efeitos da Lei 14.510/2022, aprovada pelo Congresso, que regulamentava o exercício da telessaúde, sob alegação de ausência de consulta prévia a conselhos profissionais – mesmo havendo amplo debate legislativo. Em outra frente, ministros proibiram parlamentares de divulgar trechos da CPMI dos atos de 8 de janeiro, alegando risco à “ordem democrática”, ignorando frontalmente a garantia constitucional da imunidade material do mandato parlamentar. Também foi o Supremo que, por decisão individual, retirou de pauta projetos sobre o marco temporal de terras indígenas – ainda que essas matérias tenham sido regularmente deliberadas pelo Legislativo. Tais atos representam formas graves de interferência legislativa por via judicial.
O que se presencia é uma inversão do pacto republicano. A Constituição de 1988 – concebida após o governo militar, em um esforço genuíno de reconstrução democrática – jamais outorgou ao STF o papel de tutor da consciência nacional. O espírito do constituinte originário foi o de conter concentrações de poder, fomentar a pluralidade institucional e garantir que as grandes decisões da sociedade fossem tomadas por representantes eleitos. O que temos hoje é a corrosão silenciosa desse espírito: uma Corte que, escudada em abstrações hermenêuticas, reconfigura a Constituição conforme preferências ideológicas e substitui o texto original por uma nova ordem jurídica de natureza totalitária.
A democracia representativa repousa sobre um pacto: o povo escolhe seus representantes, que deliberam e constroem normas dentro do processo legislativo. Quando uma Corte se posiciona como árbitra suprema da moral política nacional, desautorizando atos do Legislativo e do Executivo por não se alinharem a sua própria interpretação ideológica, rompe-se esse pacto. O Judiciário deixa de ser contrapeso e passa a ser obstáculo. O risco, então, deixa de ser teórico. É institucional.
Nenhum Poder deve submeter os demais a um regime de tutela. A Constituição não delega superioridade hierárquica a qualquer das funções estatais. O Judiciário é Poder, não superpoder. O fato de suas decisões serem irrecorríveis, em certas hipóteses, não as torna infalíveis nem imunes à crítica. A legitimidade de uma Corte não se constrói com reverência forçada, mas com respeito espontâneo, sustentado por autocontenção e coerência.
A ausência de resultados visíveis, em casos de impasses institucionais ou conflitos de convivência, não autoriza interpretações apressadas de omissão. Significa que os limites foram respeitados. Nenhum gestor público pode usurpar atribuições judiciais ou agir fora do que lhe permite o ordenamento jurídico. A atuação dentro da legalidade não é omissão – é dever.
É ilusório acreditar que a democracia resiste incólume quando um de seus pilares se autonomiza. Ministros que doutrinam, legislam e decidem como chefes de governo, rebaixam o Parlamento à condição de ornamento institucional. Ao cidadão, resta a percepção de que o direito passou a ser ditado por convicções individuais, e não por normas objetivas.
A Constituição não foi escrita para permitir o exercício concentrado do poder. Tampouco para transformar intérpretes em autores. A sua força reside justamente na separação de competências, no equilíbrio das instituições e na responsabilidade compartilhada. Romper esse equilíbrio, mesmo sob aparência de legalidade, representa risco real à própria ideia de democracia constitucional.
O Brasil não precisa de intérpretes iluminados. Carece de poderes que se respeitem, que se controlem mutuamente e que compreendam que liberdade não é uma concessão – é um direito que não se curva diante de nenhum ocupante de cargo vitalício.
Por Gregório Rabelo, advogado e empresário, é especializado em Direito Constitucional e Legislativo. Atua como assessor jurídico-legislativo na Câmara dos Deputados.