Opinião – Vale tudo: só não vale bem em nome dos outros

Reconheço particularmente que na vida real, não é nem um pouco comum que uma filha venda o imóvel que todos da família acreditam ser de sua mãe. Escreve Laura Brito.

29/05/2025 05:58

“Melhor que dar imóvel de forma irregular é dar exemplo de organização patrimonial.”

Ilustrativa.

Recentemente uma amiga me perguntou: você não acha um absurdo a Maria de Fátima ter vendido a casa da própria mãe na novela? A minha reação imediata foi responder que não é possível vender a casa dos outros, ainda que seja sua mãe. Mas aí eu me lembrei que na ficção vale tudo.

Ainda assim, fiquei muito curiosa com o caso. O que teria acontecido na novela Vale Tudo para gerar toda essa revolta? Pesquisando descobri que uma das personagens principais, a Maria de Fátima, vivida por Bella Campos, vendeu a casa em que morava sua mãe, Raquel, representada por Taís Araújo, para usar o dinheiro na vida fácil que sempre sonhou. De fato, uma atitude reprovável.

Contudo, eu ainda continuava intrigada. Isso porque não é possível, no Brasil, vender imóvel alheio. Nosso sistema de registro de imóveis é complexo, bem estruturado e sem a participação do proprietário, não dá para transmitir a propriedade. Foi então que eu descobri que o imóvel objeto da disputa na novela foi comprado pelo avô de Maria de Fátima em seu nome, o que permitiu que ela o vendesse sem a anuência da mãe. Ora, ora, ora.

A vida imita a arte, mas nesse caso, a novela repetiu um caso clássico da família brasileira. E ainda prestou um serviço de interesse público ao demonstrar em rede nacional os riscos de achar que é possível ter uma casa se ela não está em seu nome.

Existem expressões brasileiras que são mais famosas que novela das nove: “comprar em nome”, emprestar o nome”, “tirar no nome” e o incrível “é meu, mas tá em nome do fulano”. Nada disso faz sentido quando pensamos em segurança jurídica. Especialmente quando falamos de imóveis, os bens são da pessoa em nome de quem ele está registrado.

Se você “emprestou seu nome” para alguém financiar um imóvel, a dívida é sua e, mesmo que esse outro pague as prestações, ao final do financiamento, uma parte do imóvel será sua. Se seu primo “tirou” um carro no nome da sua avó e ela morreu, vai ter que inventariar o carro porque, na verdade, ele não era do seu primo. E, finalmente, se a casa da Raquel estava registrada como da Maria de Fátima, sinto muito, a casa era da Maria de Fátima.

Essa história se repete tanto na família brasileira que chega a impressionar. Como se o responsável pela operação, o pai da Raquel na novela, estivesse tendo uma grande ideia ao “colocar o bem no nome” da neta, evitando uma transmissão de herança no futuro. Se ele queria doar um imóvel para a sua filha, deveria ter feito isso. Mas se ele doou para a neta, é da neta.

Reconheço que na vida real, não é comum que uma filha venda o imóvel que todos da família acreditam ser de sua mãe. Mas é muito, muito frequente que esse imóvel venha a ser objeto de disputa no divórcio da filha ou que passe por um inventário inesperado quando a ordem natural da vida é invertida. Isso sem falar no risco de dívidas, até porque um imóvel de uma pessoa que outra mora não é bem de família, a princípio.

Por isso, a mensagem da novela, nesse ponto, é valiosa. Há um risco inerente a essa ideia de um bem poder ser de uma pessoa, ainda que registrado em nome da outra. Há, claro, um exagero típico da televisão. Não vemos todo dia uma situação dessas. Mas vemos todos os dias casos muito difíceis por falta de informação e pela falsa crença de que “é meu, mas em nome dos meus filhos”.

Melhor que dar imóvel de forma irregular é dar exemplo de organização patrimonial. Vale muito!

 

 

 

Por Laura Brito é advogada especialista em Direito de Família e das Sucessões, possui doutorado e mestrado pela USP e atua como professora em cursos de Pós-Graduação, além de ser palestrante, pesquisadora e autora de livros e artigos na área.

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