A transformação digital com propósito humano que está reconfigurando o papel da universidade na sociedade contemporânea. Escreve Kassandra Carvalho e Alexandre Gracioso.
16/06/2025 05:29
“O que falta, muitas vezes, é articulação, coragem para romper com modelos obsoletos”

Ilustrativa.
O mundo já não é mais o mesmo — e a educação também não deveria ser. Se a Sociedade 4.0 colocou a tecnologia no centro da produção e da informação, a chamada Sociedade 5.0 busca algo ainda mais desafiador: unir avanço tecnológico e bem-estar humano em um mesmo horizonte. Essa ideia, concebida no Japão em 2016 como parte do 5º Plano Básico de Ciência e Tecnologia, vem moldando um novo modelo educacional: a Educação 5.0.
Mais do que um salto tecnológico, trata-se de uma mudança de mentalidade. A Educação 5.0 reconhece que os grandes desafios do século XXI — como crise climática, envelhecimento populacional, desigualdade social e automação massiva — exigem competências que vão muito além das habilidades técnicas. Saber se comunicar, adaptar, liderar e resolver problemas complexos se tornou tão ou mais importante do que dominar algoritmos ou linguagens de programação.
Esse modelo educacional parte de uma compreensão mais ampla sobre o papel da universidade: não basta formar profissionais eficientes. É preciso formar cidadãos éticos, conscientes, colaborativos e inovadores. É nesse ponto que a Educação 5.0 se consolida como uma força transformadora: ela não ignora a tecnologia, mas coloca o ser humano no centro.
Tecnologia inteligente e ferramentas digitais que personalizam o ensino
Um dos pilares mais evidentes da Educação 5.0 é o uso estratégico e ético da tecnologia. A sala de aula, neste novo contexto, é mediada por ferramentas digitais que potencializam a aprendizagem e a tornam mais personalizada, acessível e flexível. Plataformas com inteligência artificial já são utilizadas para adaptar o conteúdo ao ritmo e estilo de aprendizagem de cada estudante — algo conhecido como adaptive learning. Em vez de um modelo padronizado, a trilha de estudos se ajusta às necessidades individuais do aluno, com feedbacks em tempo real e propostas de avanço baseadas no desempenho.
Outro recurso cada vez mais presente é o das bibliotecas digitais — verdadeiros ecossistemas de conteúdo acessível 24 horas por dia. Elas oferecem não apenas livros e artigos, mas também videoaulas, podcasts, cursos e materiais multimídia interativos. Algumas instituições, como a Universidade de São Paulo (USP) e a Fundação Getulio Vargas (FGV), já utilizam acervos robustos que ampliam exponencialmente o acesso ao conhecimento, independentemente da localização do estudante.
A realidade virtual e aumentada, por sua vez, ganha espaço nas disciplinas mais técnicas, permitindo que alunos de medicina pratiquem cirurgias em ambientes simulados, ou que futuros engenheiros interajam com maquetes tridimensionais de projetos complexos. Isso sem falar nos chatbots acadêmicos, capazes de tirar dúvidas instantâneas, agendar atividades e até recomendar conteúdos complementares com base nos dados de desempenho do estudante.
Essas ferramentas, que integram o espaço físico ao digital, não apenas otimizam a aprendizagem, mas a tornam mais envolvente e significativa. A sala de aula deixa de ser um lugar e passa a ser uma experiência contínua, sem fronteiras físicas nem temporais.
Creditações, soft skills e o novo currículo da universidade inteligente
Um dos aspectos mais inovadores da Educação 5.0 é a possibilidade de creditação de competências, incluindo as chamadas soft skills — como liderança, empatia, trabalho em equipe, criatividade, comunicação e gestão emocional. Antes consideradas “habilidades subjetivas”, elas agora são mensuradas, registradas e valorizadas academicamente, por meio de sistemas como portfólios digitais, badges e microcredenciais.
A ideia é que a trajetória formativa do aluno vá muito além das disciplinas formais. Participações em projetos sociais, atividades de extensão, estágios, hackathons e oficinas podem compor um perfil acadêmico personalizado, com evidências concretas de desenvolvimento de habilidades práticas e comportamentais. Isso dialoga diretamente com o que o mercado de trabalho tem buscado: profissionais completos, não apenas tecnicamente preparados, mas emocionalmente inteligentes e socialmente responsáveis.
Com isso, o currículo universitário também passa por transformações profundas. Em vez de seguir uma trilha rígida, o estudante tem a possibilidade de montar seu percurso com mais liberdade, combinando disciplinas tradicionais com eletivas de áreas diversas, cursos livres, certificações externas e experiências práticas. Essa abordagem mais flexível permite que o aprendizado faça sentido na vida do aluno e dialogue com seus objetivos pessoais e profissionais.
É verdade que a implementação plena desse modelo enfrenta barreiras estruturais, como os sistemas de secretaria acadêmica e o tradicionalismo de algumas instituições. Mas já existem bons exemplos sendo implementados no Brasil. A Fundação Getulio Vargas (FGV), por exemplo, tem explorado os microcertificados e programas por competências. A Universidade Estácio oferece disciplinas adaptativas com IA. E há diversas startups brasileiras especializadas em integração de plataformas educacionais com creditação de habilidades — o que mostra que o movimento está ganhando força.
Pesquisa, empreendedorismo e a conexão universidade-indústria
Na lógica da Educação 5.0, a pesquisa acadêmica precisa deixar de ser um exercício teórico isolado e se transformar em instrumento concreto de impacto. É por isso que a articulação entre ensino, pesquisa e inovação ganha destaque. As universidades são chamadas a produzir conhecimento aplicável, que dialogue com as necessidades reais da sociedade e estimule a criação de soluções inovadoras.
Esse caminho passa, obrigatoriamente, pela integração entre universidade, indústria e governo. Esse tripé, já muito explorado em países como a Índia, a Alemanha e a Coreia do Sul, começa a ganhar espaço no Brasil com iniciativas como o Inova USP, o Parque Tecnológico da UFRJ e os Núcleos de Inovação Tecnológica (NITs) espalhados pelo país.
A lógica aqui é clara: o estudante precisa vivenciar problemas reais, participar de projetos interdisciplinares e desenvolver competências empreendedoras desde a graduação. O papel da universidade deixa de ser apenas o de formar empregados e passa a incluir a formação de criadores de soluções e geradores de oportunidades.
Isso é ainda mais relevante quando se considera a economia digital e a demanda por profissionais com mentalidade de startup. Dominar ferramentas como design thinking, metodologias ágeis e análise de dados se torna tão necessário quanto aprender sobre finanças ou gestão de pessoas. E, mais uma vez, o uso de plataformas digitais facilita esse processo, com simuladores de negócios, laboratórios virtuais e mentoria remota com especialistas do mercado.
Responsabilidade social e competências verdes: o impacto no mundo real
Não há futuro para a educação que não esteja conectado ao futuro do planeta. E é por isso que a Educação 5.0 inclui em sua base a formação de cidadãos comprometidos com a sustentabilidade, a ética e a transformação social. O desenvolvimento de competências verdes, como consumo consciente, avaliação de impactos ambientais e gestão de projetos sustentáveis, se tornou uma exigência global.
Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), o alcance dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) depende diretamente da capacidade das instituições formadoras em preparar profissionais com visão crítica e responsabilidade socioambiental. E isso vale para todas as áreas: da engenharia ao design, da medicina ao direito.
Em países como Alemanha e Suécia, já existem cursos universitários com trilhas específicas em sustentabilidade aplicada à profissão. No Brasil, algumas IES já incorporam temas como ESG (Environmental, Social and Governance), economia circular e justiça climática ao currículo. Mas ainda há muito a avançar.
Mais do que incluir disciplinas temáticas, a Educação 5.0 propõe que o compromisso com o mundo seja transversal, presente em todas as áreas e práticas acadêmicas. Isso envolve também a formação de professores, a gestão institucional e as parcerias com a comunidade.
Oportunidade histórica para o ensino superior brasileiro
A Educação 5.0 não é uma utopia futurista. Ela é uma proposta concreta, viável e urgente. Em um cenário onde a complexidade cresce mais rápido do que os modelos educacionais conseguem acompanhar, repensar a universidade é mais do que necessário — é estratégico.
O Brasil tem, hoje, a chance de ocupar um novo lugar no mapa global da inovação educacional. Temos massa crítica, produção científica relevante, ecossistemas digitais em expansão e milhares de jovens dispostos a aprender e transformar. O que falta, muitas vezes, é articulação, coragem para romper com modelos obsoletos e um olhar mais ousado para o futuro.
Ao abraçar a Educação 5.0, o país não apenas melhora sua competitividade internacional. Ele se aproxima de um modelo de desenvolvimento mais justo, inclusivo e sustentável. Um modelo onde tecnologia e humanidade caminham lado a lado, na formação de pessoas capazes de enfrentar os desafios mais urgentes do nosso tempo — e, sobretudo, de construir novos caminhos.
Kassandra Carvalho, pedagoga e especialista em novas tecnologias aplicadas ao ensino da Pearson Higher Education e do professor Alexandre Gracioso, que é especialista e consultor em ensino superior e gestão.