Opinião – O aplicativo que vai salvar a democracia!

O aplicativo Livre! é uma prótese de prudência, que será usada para manter o debate público nos limites exigidos pelos guardiães da nossa Constituição. Escreve Luciano Trigo.

23/06/2025 05:58

“Não se trata de censura, mas de uma adaptação dos conteúdos para proteção dos internautas.”

(Foto: ChatGPT, com orientações do colunista)

Todo mundo sabe que a nossa democracia está ameaçada. Todos os dias as instituições são alvos de ataques: milícias fascistas chegaram ao ponto de questionar decisões judiciais, criticar autoridades e até mesmo contar piadas politicamente incorretas. Torna-se cada vez mais urgente conter esses abusos.

A liberdade de expressão precisa ser vigiada. Hoje diversos mecanismos, tanto governamentais quanto privados, já monitoram, por meio de sofisticados algoritmos, conteúdos inapropriados, como discurso de ódio e desinformação. Mas isso ainda é problemático, já que em alguns casos o cidadão se expressa mal e acaba sendo criminalizado. Afinal, quem nunca postou algo que não devia no calor da raiva?

Por outro lado, as próprias plataformas enfrentam pressões crescentes para remover conteúdos, e o medo da responsabilização pode levá-las a adotar políticas de moderação rigorosas demais. Esse ciclo de vigilância e punição tende a criar um efeito inibidor, com usuários e redes sociais se autocensurando para evitar represálias. Mas a autocensura é um dos maiores inimigos da liberdade de expressão: quando as pessoas evitam compartilhar suas opiniões por medo, o debate público se enfraquece – o que é inadmissível em uma democracia pujante como a nossa.

É nesse cenário conturbado que surge uma inovação tecnológica que promete revolucionar a maneira como nos comunicamos on-line: o Livre!, um aplicativo de autorregulação discursiva que reescreve postagens potencialmente problemáticas antes mesmo que elas cheguem aos olhos atentos dos guardiães da democracia.

O Livre! permite que os usuários expressem suas ideias sem se preocupar com consequências legais ou sociais. O aplicativo faz uma espécie de mediação entre a emoção do cidadão e a linguagem aceitável pelo Estado. Ao proteger os indivíduos de si próprios, ele salvará muita gente do bloqueio de contas, da desmonetização de canais, de processos judiciais, do linchamento digital e até da prisão. É a tecnologia a serviço da democracia!

Como funciona? Palavras como “fraude”, “corrupto”, “ditadura”, “censura”, “urnas”, “vacina” etc. disparam o algoritmo do aplicativo. Ao detectar a presença dessas palavras em postagens potencialmente controversas, o Livre! não as apaga – isso seria um atentado à liberdade de expressão. Em vez disso, substitui “censura” por “curadoria intensa”, “fraude eleitoral” por “solução aritmética heterodoxa” etc.

Caso o usuário insista em usar termos polêmicos, o app pode até ativar o modo “codificação poética”, usando linguagem alegórica ou mesmo rimada, como em: “Na terra onde a toga reluz, toda palavra ousada vira cruz”.

Ainda em fase de testes, o aplicativo funciona como um anjo da guarda digital, uma vacina discursiva, um filtro semântico treinado com deep learning e integrado às principais plataformas de redes sociais. Ao tornar todos os conteúdos compatíveis com a democracia e o Estado de direito, é uma prótese da prudência, que será usada para manter o debate público nos limites exigidos pelos guardiães da nossa Constituição.

As redes sociais, hoje sufocadas por regras cada vez mais difíceis de interpretar e apela ameaça de multas milionárias, verão no Livre! um aliado, pois o app age preventivamente, em tempo real: só é postada a versão “higienizada” dos conteúdos, reduzindo drasticamente o risco de litígios e sanções regulatórias. Ao prevenir a publicação de conteúdos polêmicos, o Livre! garante que as plataformas continuem sendo espaços vibrantes para o diálogo democrático, mas em um ambiente mais saudável.

O Livre! é capaz de lidar com os temas mais sensíveis, como urnas eletrônicas, eficácia das vacinas, ideologia de gênero, abusos do Judiciário e discurso de ódio. Vou dar alguns exemplos:

Se você postar “Essa decisão do Supremo é um escândalo jurídico”, o Livre! reformulará o texto assim:  “A recente manifestação do órgão máximo de interpretação constitucional levanta questionamentos interpretativos não triviais no meio jurídico”.

“As eleições foram manipuladas e não refletem a vontade popular” pode ser reformulado para “Há preocupações sobre a transparência do processo eleitoral”. Já “As urnas eletrônicas são uma fraude total” pode virar “Certos cidadãos expressam preocupações com a opacidade técnica dos sistemas de apuração digital”.

“O ministro mentiu descaradamente” vira “Houve, da parte da autoridade em questão, uma comunicação possivelmente dissonante dos fatos verificáveis disponíveis”, ou “O conteúdo divulgado pela autoridade demanda cautela interpretativa”. Já a afirmação fascista “As vacinas são inúteis e perigosas” vira “Há indivíduos relatando respostas imunológicas aquém das expectativas estatísticas, em casos isolados”.

O Livre! transforma “A ideologia de gênero está destruindo a sociedade” em “Percebe-se uma crescente tensão entre abordagens pedagógicas contemporâneas e valores familiares tradicionais”.

Filtrada pelo aplicativo, a frase “Estamos em uma ditadura do Judiciário” vira “A atuação proativa da Corte tem gerado debates sobre os limites funcionais entre os Poderes”, ou ainda: “Certa autoridade togada adotou métodos heterodoxos de mediação informativa, que evocam modelos administrativos mais verticais”.

Por fim, “Não aguento mais tanta censura!” pode ser ressignificado pelo Livre! para “A crescente mediação institucional do discurso público tem gerado sensações difusas de contenção expressiva em alguns setores da população”.

Não se trata de censura, evidentemente, mas de uma adaptação de conteúdos para proteção dos próprios internautas. É como usar um capacete: você ainda pode correr, mas estará protegido. O Livre! é, por assim dizer, uma espécie de airbag discursivo. Ou corretor ortográfico das opiniões e pensamentos.

Em sua versão premium, o Livre! explica ao usuário por que determinados conteúdos foram modificados, ajudando a entender as nuances da liberdade de expressão na nova democracia. Dessa maneira, o aplicativo contribui para promover a conscientização da sociedade sobre os limites da liberdade de expressão. Ou seja, o Livre! terá um efeito pedagógico de longo prazo no letramento cívico da população.

Você continuará se expressando livremente, desde que não incomode ninguém. O objetivo do Livre! não é apagar a crítica, mas torná-la palatável e compatível com a democracia e o Estado de Direito, evitando que o usuário de redes sociais incorra em crime. Como diz o slogan do aplicativo: “Não é censura se você mesmo se regula”.

No futuro, as pessoas estarão acostumadas a pensar da forma correta e a usar as redes da forma correta, sem colocar em risco a democracia com postagens de ultradireita. Mas, enquanto isso não acontece, bastará recorrer ao Livre!.

Agora, falando sério: o Livre! será o símbolo e sintoma da escolha impossível que vem sendo imposta todos os dias a cada brasileiro comum: arriscar se expressar livremente e enfrentar as consequências, ou aprender a disfarçar opiniões e pensamentos, medindo cada palavra para sobreviver no campo minado em que vivemos hoje. A distopia está logo ali, e ela não virá com botas e armas, mas travestida, justamente, de defesa da democracia.

Disclaimer infelizmente necessário, já que nem todo mundo entende ironia: este é um texto de ficção. O Livre! não existe. Ainda.

 

 

 

Por Luciano Trigo é escritor, jornalista, tradutor e editor de livros. Autor de ‘O viajante imóvel’, sobre Machado de Assis, ‘Engenho e memória’, sobre José Lins do Rego, e meia dúzia de outros livros, entre eles infantis.

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