Uma crítica, um gracejo, uma ironia, uma sátira estão sujeitos a retirada imediata das redes, se considerados antidemocráticos, ou misóginos, homofóbicos, ou outros modismos. Escreve Alexandre Garcia.
02/07/2025 05:45
“O pior é o estigma ‘antidemocrático’.”

A ministra Cármen Lúcia, do STF. (Foto: Antonio Augusto/STF)
Cármen Lúcia, nesses dias, deve ter sido campeã como alvo de xingamentos e sugestões para que o Senado a inclua na lista de pedidos de impeachment de ministros do Supremo. O motivo foi o voto a favor da censura, em que ela pontuou que “a grande dificuldade está aí: censura é proibida constitucionalmente, eticamente, moralmente, e eu diria até espiritualmente. Mas também não se pode permitir que estejamos numa ágora em que haja 213 milhões de pequenos tiranos soberanos…”. Pois eu defendo o direito de a ministra expressar sua opinião porque, se eu defendo a liberdade de expressão, não posso defender apenas a minha liberdade, mas também a dos outros, ou eu seria um hipócrita; estaria afirmando que eu posso falar o que quiser, mas a ministra não pode.
Mas discordo da ministra por uma razão simples: se fossemos 213 milhões de tiranetes, se fossemos todos pequenos tiranos, não teríamos sobre quem exercer nossa tirania e seríamos todos iguais em poder, anulando-se mutuamente nossa dominação, que ficaria limitada a cada um de nós. Teríamos uma democracia de iguais tiranetes. A ideia, a imagem, é irreal, por impraticável. Tão irrazoável quanto a ministra, que proclamara que “cala a boca já morreu!”, votar em uma fórmula que enseja a censura que ela, na mesma frase, reconhece ser proibida na Constituição, na ética e até no espírito. Um paradoxo, que ela chamou de “uma grande dificuldade”. E votou de novo de maneira “excepcionalíssima”, como fizera ao censurar previamente um documentário da Brasil Paralelo.
Terminou em 8 a 3 a votação anulando a vontade da maioria do Congresso, que aprovou os artigos 19 e 21 do Marco Civil da Internet. Os três divergentes – André Mendonça (em voto magistral), Nunes Marques e Edson Fachin – na verdade convergem: quem redige leis é o Legislativo, o mais poderoso dos poderes. Os oito vencedores alegam que é preciso censurar mentiras, discursos de ódio, antidemocráticos, de golpismo. Sim, censurem para que sejamos enganados pelo mentiroso, já que ele não exporá antes suas mentiras e, quando nos surpreender, já será tarde, porque estará eleito presidente da República. Ou quando formos massacrados pelo ódio, sem que o discurso de ódio nos prevenisse. Como vamos nos proteger de um golpista, se não pudermos ter acesso às suas intenções? Como vamos nos distanciar e isolar os pequenos tiranos, se não os identificarmos nas redes? Cidadania não precisa de tutela – tutor é dominador. Deixem que censuremos os mentirosos, não lhes dando leitura nem audiência.
Nessa decisão do Supremo, foi atingida não apenas a liberdade de expressão, mas também outro direito pétreo: a honra, pois aquele que for caluniado tem de esperar ordem judicial para retirar da rede; enquanto isso, a calúnia se potencializa. Para essas vítimas, não inventaram proteção rápida. Mas uma crítica, um gracejo, uma ironia, uma sátira estão sujeitos a retirada imediata, se considerados antidemocráticos, ou misóginos, homofóbicos, ou outros modismos. O pior é o estigma “antidemocrático”: se o parâmetro for o batom de Débora na Têmis, pode resultar em 14 anos de prisão. Estamos perdendo a preciosa utilidade da crítica, do contraponto, que nos ajuda a corrigir nossos erros e a conhecer mais o adversário.
Por Alexandre Garcia, escreve colunas sobre política nacional publicadas semanalmente.